UMA SEMIÓTICA DIALÓGICA
João Vianney Cavalcanti Nuto[1]
O que “significa” uma obra de arte?
Como podemos compreendê-la em sua especificidade artística? O que uma
composição artística nos convida a “ver”? Luciano Ponzio discute esta complexa
questão a partir da noção de texto artístico como texto de afiguração ou
escritura. Seguindo os conceitos da Semiótica – privilegiando o pensamento de
Peirce, mas sem deixar de dialogar com a Semiologia de Barthes e reflexões de pensadores
como Lévinas, Deleuze, Merleau-Ponty, Blanchot, entre outros –, este livro
parte da concepção de texto como qualquer organização de signos (verbais ou de
qualquer outra natureza) dotada de sentido. Para analisar as características e
efeitos do texto artístico, Luciano Ponzio distingue a forma de composição e as
potencialidades de sentido dos textos elaborados esteticamente (textos de
afiguração), em contraste com os textos voltados para a comunicação pragmática (textos
de representação). Partindo da dicotomia, proposta por Bataille, entre olhar e
visão, o autor dialoga com Peirce e Lévinas, observando certa relação uma
duplicidade do signo icônico com o seu referente, em que esse tipo de signo não
apenas aponta para o referente, mas se transforma, de certa maneira, em seu
duplo (o que não quer dizer cópia), em um processo de afiguração que extrapola
a função de representação. Esse transbordamento afigurativo é que amplia –
invocando as concepções de Bataille – o olhar, gerando a visão. Seguindo a
concepção de Lévinas, Ponzio define o texto de escritura (ou de afiguração)
como aquele que ultrapassa a remissão ao significado convencionado.
Ao longo de todo o livro, Ponzio trava
um diálogo com Mikhail Bakhtin ao associar os conceitos de representação e
afiguração com a classificação dos gêneros do discurso em primários (da vida
quotidiana) e secundários (de elaboração mais complexa, oriundos de relações
sociais mais formalizadas). Por esta distinção, os textos pragmáticos de
circulação quotidiana são textos primários, de significação unívoca, fechada;
já os textos artísticos, dos mais densos entre os textos secundários, permitem
uma multiplicidade de sentidos, que transcende o momento histórico de sua
produção e a própria relação com as circunstâncias biográficas de seu autor. A
partir dessa distinção, Ponzio concentra suas reflexões nas características do
texto artístico, com base no princípio de que o complexo permite elucidar
melhor o simples; e também, concordando com Kierkegaard, com a noção de que a
aparente simplicidade de certas composições artísticas não é espontânea, mas
laboriosamente alcançada.
Contudo a distinção entre texto comum
e texto artístico não implica, de maneira alguma, uma abordagem formalista. Não
se trata – como no Formalismo Russo – de apontar uma essência imanente do
artístico pelo contraste puramente formal com o não artístico. Seguindo a visão
dialógica – em que Bakhtin é uma referência constante – Luciano Ponzio tem
sempre em mente a concepção discursiva de enunciado, ainda que utilize muito
mais a palavra “texto”. Trata-se de analisar o texto não apenas como uma
composição formal, mas como um ato – e uma potencialidade de ato, já que uma
composição textual prevê a geração de sentidos diversos em futuras leituras,
sendo somente por meio de sua realização como discurso que a composição textual
ganha sentido.
O diálogo com Mikhail Bakhtin
conjuga-se com outra presença marcante em Visões
do texto, como artista e pensador: Kazimir Malevitch. Ao analisar a arte de
Malevitch, com a teorização do artista sobre a própria obra, o Suprematismo,
Ponzio reflete sobre o processo de afiguração como transbordamento do signo
icônico em relação ao referente. A pintura, como texto de escritura, não visa a
simplesmente representar o “real” na tela, mas a recriá-lo. Assim, a afiguração
pictórica cria uma nova realidade, cuja relação com o referente representado
pode ser muito tênue, ou mesmo ausente, em que a visão do autor-artista
transfigura o olhar do autor-pessoa. Cabe ao contemplador do texto de
afiguração compreender a visão (em termos de Mikhail Bakhtin, o objeto
estético) da arquitetônica da obra, em vez de detectar, na obra, o objeto do
olhar, pois isso, quando possível, deturpa a afiguração, reduzindo-a à
representação. A representação de um cachimbo na tela não é um cachimbo, como
adverte o famoso quadro de Magritte; por outro lado, cobrar do autor-artista a
confirmação verbal de que “isto é um galo” (ironia de um personagem de D. Quixote com a notória incompetência
de um pintor), é querer reduzir a visão ao olhar, a afiguração à representação,
a alteridade à identidade. Por outro lado, em consonância com Lévinas e
Malevitch, Ponzio observa, no texto de afiguração, uma potencialidade
performativa, criadora de uma realidade puramente sígnica, que se acrescenta ao
mundo representado. Essa potencialidade performativa também têm consequências
ideológicas, pois, em vez de simplesmente reproduzir a ideologia estética
vigente, o inacabamento do texto de afiguração a põe à prova e a questiona.
Prosseguindo seu diálogo com Bakhtin,
Ponzio reflete sobre a responsabilidade ética dos atos gerados tanto na
produção quanto na recepção do texto artístico. Por essa reflexão, o autor
passa a examinar a responsabilidade específica do texto de escritura. Para o
Ponzio, os textos primários envolvem a responsabilidade que Bakhtin – em Para uma filosofia do ato responsável –
denomina “responsabilidade especial”, isto é, uma responsabilidade puramente
técnica, o que permite que os textos primários sejam facilmente substituíveis,
pois são textos que respondem por funções meramente comunicativas, abrangendo
sentidos bem especificados e limitados. Já o texto artístico, por sua densidade
estética, envolve uma responsabilidade não transferível a outros textos. A
responsabilidade do texto artístico está diretamente ligada à sua abertura
semiótica, pois esse tipo de texto não propõe simplesmente transmitir
informações, nem oferecer um enigma a ser decifrado, mas, no dizer do escritor
Osman Lins, deflagrar sentidos. Trata-se de uma responsabilidade que advém não
somente do autor-pessoa (quem escreve e publica), mas daquele elemento
intrínseco e fundamental, para a realização das potencialidades do texto
artístico, que Bakhtin denomina autor-criador.
Ainda seguindo Bakhtin, demonstra Ponzio
que a afiguração só é possível por meio do distanciamento estético (exotopia):
o autor-pessoa cria o autor-criador quando, de certa forma, consegue
distanciar-se da imersão nas próprias circunstâncias, para assim ter uma visão
global, uma arquitetônica, que ultrapasse a mera representação do objeto. É esse
distanciamento, com o excedente de visão que dele resulta, é que permite a
crítica à ideologia automatizada nos textos de representação.
Ciente de que uma obra só se realiza
plenamente em processo dialógico, Ponzio chama a atenção para o fato de que um
texto de afiguração (texto de escritura) pode ter seu potencial empobrecido por
uma leitura primária, aquela que busca, em um texto de escritura, somente a
representação, leitura redutora que contamina até mesmo certas abordagens
críticas; leitura que reduz a obra de arte ao transferi-la para o mundo dos
objetos, já que o sentindo artístico transcende a pura função pragmática, em um
transbordamento estético que pode ser encontrado até mesmo em certos utensílios.
Seria, portanto uma traição à riqueza artística de uma obra lê-la buscando o
sentindo unívoco de um texto de representação, o que equivale também a reduzir
sua responsabilidade plena à responsabilidade técnica. Contudo, isto não
significa que o autor defenda a contemplação da obra artística como pura
fruição, associando-a diretamente à noção de “arte pela arte”. A riqueza e
densidade de sentidos de uma obra implica uma relação entre arte e vida, que,
segundo Bakhtin, não é mimética, mas ética. O leitor do texto artístico deve responder
ativamente à experiência estético-ética, incorporando-a à própria vida (não
necessariamente de maneira direta e pragmática), em vez de adotar a postura
puramente hedonista de fruidor. Igualmente em diálogo com Bakhtin, Ponzio
defende que a contemplação artística não é mera “recepção” – termo que implica
uma noção de simples transferência de um sentido completamente dado – mas compreensão
responsiva. Compreender, neste caso, não é apenas assimilar o texto, mas
estabelecer uma relação dialógica em que a alteridade do leitor lhe agregue
sentidos potenciais. Trata-se, portanto,
de (utilizando um termo de Bakhtin), tornar-se autor-contemplador.
As reflexões semióticas de Visões do texto ultrapassam a noção de
texto como mero tecido de signos, como sistema abstraído das interações da vida
social- limitação de uma visão estruturalista que Bakhtin critica – em função
de um estudo da linguagem que contemple a enunciação. Ao privilegiar a dimensão
interpretativa da Semiótica de Pierce em diálogo com o pensamento de Bakhtin –
demonstrando que as reflexões de Bakhtin sobre o texto verbal também se aplicam
a outros meios semióticos – Luciano Ponzio nos oferece uma semiótica que
explica o fenômeno do texto artístico em seu dialogismo. Uma semiótica
dialógica.
[1] Professor Adjunto de Teoria da
Literatura da Universidade de Brasília (UnB)
Coordenador do Grupo de Pesquisa Literatura e Cultura da Universidade de
Brasília (UnB)