quinta-feira, 27 de julho de 2017

O desenvolvimento da linguagem da criança numa perspectiva bakhtiniana

Amanda Lucy dos Santos costa

“Esse diálogo entre pais e crianças acontece muito antes de elas pronunciarem suas primeiras palavras”
(Apresentação de Del Ré, De Paula e Mendonça)

Diante do prazeroso dever de observar o crescimento de uma criança, pensar a construção da identidade tem sido um exercício diário. Não por acaso, o reencontro com a “A linguagem da criança: um olhar bakhtiniano”, um compêndio de ensaios enriquecedores organizado pelas escritoras Alessandra Del Ré, Luciane de Paula e Marina Célia Mendonça (publicado pela editora Contexto em 2014), tem sido um feliz momento de (re)aprendizagem, (re)construção e reflexão. Este texto é uma breve releitura apreciativa dos dois primeiros ensaios dessa obra.


O ensaio intitulado “Aquisição da linguagem e estudos bakhtinianos do discurso”, escrito pelas supracitadas organizadoras do livro, baseia-se nos estudos de desenvolvimento da linguagem de Frédéric François, e compartilha da ideia de que “pensar sobre a linguagem da criança contribui para entender o funcionamento da linguagem humana”.
Com base nas teorias do Círculo de Bakhtin, as autoras afirmam que o fato de sermos constituídos pela linguagem e constantemente modificados por ela, ao mesmo tempo em que a constituímos e a modificamos também (cada indivíduo de modo singular), torna impossível a concepção da relação linguagem-cultura por meios meramente léxico-gramaticais. Antes, é preciso verificar a forma como o indivíduo interage com a linguagem e seus variados usos para entender a forma como ela nos modifica.
Esse modo de pensar leva François, em “A linguagem da Criança” (2006) a afirmar a necessidade do desenvolvimento de uma teoria de “funcionamento da linguagem”, na qual seria levada em consideração a translinguística. Esse conceito de translinguística desenvolvido por Bakhtin sugere que a linguagem está além do signo linguístico, dela participando fatores socioculturais extralinguísticos, como contexto de fala, por exemplo.
No caso da linguagem da criança, em especial, não se pode compreendê-la com base na retomada da sua voz pelo adulto. É preciso que a própria criança tenha voz. Segundo as autoras, a criança deve agir e ser encarada como sujeito agente na linguagem, pois a sua linguagem é sua forma única de ver e habitar o mundo. E o enunciado não deve ser desvinculado desse sujeito, seja ele criança ou adulto, pois essa é uma relação dialógica.
Seguindo a proposta de olhar a aquisição da linguagem com os “óculos bakhtininanos”, as autoras definem “língua” como uma capacidade intersubjetiva, sempre vinculada a sujeitos integrantes e por ela integrados. A “fala”, por sua vez, é um ato responsivo quando, concreta e viva, está tomada de ideologia, sendo necessário, para a efetiva comunicação, que se leve em conta sua essência histórica e social.
Também destaca-se a importância do conceito do “excedente de visão” quando se tem a criança como sujeito da enunciação, pois a fala em função do outro é a tomada de consciência não só de si, mas do outro enquanto fator necessário para a sua fala. Ao citar Bakhtin, reafirmam a importância do outro e da sua relação com o outro também na formação das crianças:

É nos lábios e no tom amoroso deles [da mãe e de seus próximos] que a criança ouve e começa a reconhecer seu nome, ouve denominar seu corpo, suas emoções e seus estados internos: as primeiras palavras, as mais autorizadas, que falam dela, as primeiras a determinarem sua pessoa, e que vão ao encontro de sua própria consciência interna, ainda confusa, dando-lhe forma e nome, aquelas que lhe servem para tomar consciência de si pela primeira vez e para sentir-se enquanto coisa-aqui, são as palavras de um ser que a ama. (BAKHTIN, 1997, 67-68)

Também aí está a importância de se observar o funcionamento da linguagem considerando a translinguística, pois esse cruzamento de vozes participa de maneira fundamental para a construção de uma subjetividade/alteridade. (Sobre alteridade e a importância do outro no desenvolvimento da linguagem, há também nesse livro o texto “A retomada da palavra da criança pelos pais”).
A aquisição da língua materna com base na comunicação mãe/bebê, adulto/criança no estágio pré-linguístico é abordada no ensaio seguinte pelas autoras Rosângela Hilário, Luciane de Paula e Rafaela Bueno: “Relações entre Bakhtin e Bruner nos estudos em aquisição”. Ao relacionarem o conceito de gêneros do discurso, de Bakhtin, ao conceito de formato de Bruner, as autoras explicam o como a criança se inicia na linguagem a partir das situações sociais de comunicação.
Fato é que, antes mesmo de entender as palavras, a criança já entende alguns formatos de comunicação com base nas suas relações mais próximas. “A linguagem surge como adicional ao meios não verbais” (BRUNER, 1984, p.76). Dessa forma, a criança vai adaptando, de acordo com sua experiência, os formatos de ação aos atos de fala que os acompanham.
Essa concepção também se aproxima do conceito de enunciado desenvolvido por Bakhtin, pois, como explicam as autoras, o enunciado é composto tanto pela parte verbal “realizada em palavras” quanto pela parte extra-verbal “presumida”. E isso tudo é muito claro na fase inicial da aquisição da linguagem, principalmente na relação mãe/bebê.


Além das conversas casuais, nessa fase, diversos gêneros estão presentes na comunicação adulto/criança: narrativas, cantigas de ninar, contos, jogos lúdicos, parlendas etc... e todo contexto social que os acompanham. De modo que se, ao deitar a criança no berço, por exemplo, a mãe costuma iniciar uma cantiga de ninar, independente da compreensão verbal, presume-se a intenção da fala pelo formato da situação.
As autoras finalizam ratificando que “a inserção da criança no universo de sentido se dá, nessa perspectiva, pelos gêneros, que se integram a formatos rotinizados [...] possibilitando os primeiros usos da linguagem.”
A verdade é que o desenvolvimento da linguagem de uma criança está inteiramente relacionado com a construção de uma identidade. Isso ocorre não apenas na infância, mas o próprio ser humano, em constante processo de (trans)formação, nunca deixa de desenvolver sua linguagem e sua capacidade de se comunicar. A linguagem o constitui e ele constitui a linguagem, fruto de sua essência social/sociável. Por esse motivo, é de suma importância não só promover situações de fala com a criança, ainda que esta esteja em estágio pré-linguístico, mas permitir e estimular a sua expressão espontânea assim como o contato com o outro. À medida que a criança aprende a se comunicar com o outro, seja verbal ou não verbalmente, ela se insere no mundo social e desenvolve sua identidade com base nas relações sociais que estabelece. Então, naturalmente, seu crescimento se dá de modo dialógico e sua fala torna-se um ato responsivo.

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