Resenhas


 Dom Quixote à moda russa
Fábio Barros[1]

 

A obra de Cervantes já teve várias adaptações cinematográficas, entre elas a francesa Don Quichotte, de 1933, dirigida por Georg Wilhelm Pabst. Esta consiste em um musical que, de certa forma, não consegue representar a essência da obra literária, sendo menos dramática. Depois, houve o lançamento, em 1992, do Don Quijote de Orson Welles, que iniciou a maldição de Dom Quixote. As filmagens da versão de Welles começaram em 1955 e continuaram por 14 anos, até o filme ser montado postumamente e lançado em 1992.

Recentemente, houve o lançamento de uma livre e muito premiada adaptação, também magnífica, a qual foca a questão da melancolia e do silêncio. Feito pelo país de Cervantes e por Quixotes (de acordo com as palavras do diretor), Honor de Cavalleria, do espanhol Albert Serra, é simples e de beleza poética incrível.

E hoje, voltando à maldição de Quixote, temos a tentativa de realização de mais uma adaptação, desta vez por Terry Gilliam, o consagrado diretor de Brazil – o filme, 12 macacos e As aventuras do Barão Munchausen. Tais tentativas resultaram no documentário Perdido en La Mancha, de 2002, dirigido por Keith Fulton e Louis Pepe. O filme retrata os “dragões” que atrapalham o desenvolvimento da produção de Gilliam.

Mas a obra considerada até então a melhor e mais fiel adaptação do livro de Cervantes é Don Kikhot, de 1957, do diretor russo Grigori Kozintsev, exatamente o objetivo desta resenha. Realmente, a versão realizada pelo país de Bakhtin é incrível e merece ser vista como a melhor feita até agora. Kozintsev conseguiu adaptar o livro a um contexto cinematográfico de solidão e de devassidão da alma humana, associado com paisagens da região árida e sem vegetação da Crimeia. A fotografia é um dos elementos que mais chamam a atenção, assim como o figurino e as encenações.

No papel de Dom Quixote, temos uma bela interpretação dramática de Nikolai Cherkasov, indicado à Palma de Ouro, no Festival de Cannes (1957). O mesmo ator trabalhou em Ivan, o terrível, como o Czar Ivan IV. Não nos esqueçamos da atuação de Yuri Tolubeyev, no papel de Sancho Pança. Os dois atores protagonizaram momentos clássicos da obra de forma muito poética. Os diálogos conseguem afirmar Don Kikhot como um clássico que não pode ser deixado de lado ou esquecido.



[1] Fábio Barros é estudante de Letras na Universidade de Brasília (UnB).

Venturas e desventuras da literatura: 
olhares cruzados sobre o marginal, 
o local, o nacional e o universal     
Isabel Cristina Corgosinho[1]

O livro de Wladimir Krysinski[2] Comparación y Sentido – Várias localizaciones y convergencias literárias[3] é resultado de uma compilação de ensaios escritos a partir de demandas várias: apresentações em congressos, conferências, textos para publicação em revistas literárias sobre tema diversos da literatura. O intento foi constituir um conjunto de textos coerentes e variados em torno das práticas comparativas. A premissa central de seu livro reside na convicção de que entre a comparação e o sentido existem lugares inevitáveis. O objeto crítico da literatura é diferencial, convergente e dialético. 

Para destacar a importância e a dinâmica viva da crítica comparatista, em nível mundial, Krysinski lista autores latino-americanos, com destaque especial para os nossos brasileiros, o que nos enche de merecido orgulho. São eles: Antônio Candido, Leyla Perrone-Moisés, João Alexandre Barbosa, Tania Franco Carvalhal, Luis Costa Lima, Eneida de Souza, Wander Mello Miranda, Raul Antelo, Silviano Santiago, Roberto Schuwarz, Eduardo Coutinho, Flora Sussekind, Lisa Block de Behar y Zulma Palermo. Segundo Krysinski, o que se destaca nas análises e apresentações dos comparativismos desses críticos é a evidência da complexidade local e suas tentativas de fixar limites compartimentais entre o local e o universal. 

O livro de Krysinski se compõe de três ricos capítulos, além da valorosa e orientadora introdução, da qual faremos um resumo crítico. No capítulo I, “Poética de la Boca Invisible”, o crítico reúne J. Joyce, T.S. Eliot e Ezra Pound; no capítulo II, “Saberes Novelescos”, encontramos inéditas reflexões sobre o romance e seus grandes nomes que vão de Cervantes a José Saramago; e, por fim, no  terceiro capítulo, o estudioso da literatura vai encontrar o rico horizonte da “Poesía y Metapoesía”, baseado nas reflexões sobre W. Whitman, F. Pessoa, J. L. Borges, Enrique G. Correa, Octavio Paz, Czeslaw Milosz e o nosso saudoso Haroldo de Campos. 

A multiplicidade de valores contidos nessas reflexões sobre poéticas da literatura mundial nos leva a crer no potencial inestimável da crítica de vanguarda representada por Wladimir Krysinski, felizmente reconhecido em vida ao receber, entre tantos outros prêmios, o Primeiro Prêmio Internacional de Discurso Literario, entregue pela Olkahoma State University, Stillwater, em 1985.

Venturas e desventuras da literauta mundial 

O autor localiza o contexto da mundialização[4] como a tela de fundo da literatura. Considera o modelo econômico da mundialização como análogo funcional do modelo cultural, capaz, portanto, de atingir direta ou indiretamente a práxis literária. A comparação entre o “universal” na literatura e o “mundial” da economia revela, entretanto, uma situação conflitiva. A mundialização corresponde apenas superficialmente ao universalismo. Entre este e aquela se interpõem forças como o local, o nacional, o marginal bem como as forças relativas à identidade, ao identitário. As forças atuam de duas maneiras: se, por um lado, desvelam o caráter ideológico e problemático da universalização econômica ou literária, por outro, potencializam um desejo de acolhida e valorização de culturas ou literaturas que aspiram a um reconhecimento internacional. No que diz respeito à literatura, a tensão dialética que se exerce, por um lado, do local, do nacional, do marginal e do identitário e, por outro, do mundial comportaria, então, transformações notáveis no cânone universal, tal como o concebe Harold Bloom.

Krysinski observa que não é possível hoje refletir sobre as metamorfoses da literatura no século XX sem levar em consideração a literatura universal, “vista al mismo tempo como colección representativa de obras producidas a escala planetária y como conjunto de valores fundamentales compartidos por todos los seres humanos.”  

Os cânones do universal literário se erigem e se confluem, se excluem e se absorvem, por isso, há que se postular dialeticamente uma dupla leitura e interpretação do problema. Em primeiro lugar, a literatura universal[5] não pode conceber-se como um encadeamento absoluto de valores que se subtenderiam a sua base; torna-se necessário desmitificar o presumido caráter absoluto do universalismo. Em segundo lugar, a literatura universal se constitui mediante a prática da literatura em escala planetária.

A orientação da proposta de Krysinski para o problema universal literário está baseada em uma dialética de reconhecimento, cuja complexidade implica um movimento de cinco atuantes: o local, o nacional, o marginal, o institucional e o universal. Estes são os suportes atuantes e semânticos de um relato de valores que se desenrolam em escala planetária e que garante as formas e conteúdos da literatura universal. 

Repensar hoje a questão da literatura universal exige a tomada de consciência de vários problemas, que passam, inclusive, pela hierarquização de todos os aspectos da criação literária, de sua recepção e de sua teorização. Na perspectiva de Krysinski, acabaram-se os bons tempos de teorias como o formalismo, o New criticism, a sociologia literária, a sociocrítica, a crítica marxista, a semiótica e tantas outras. O que se pode afirmar hoje sem medo de equívocos é que as certezas epistemológicas se esvaziaram consideravelmente, inclusive a teoria desconstrutivista que se tem desconstruído a si mesma. 

Entre um pós-modernismo triunfalista e uma modernidade que deve se reescrever, entre a resistência e a teoria e as teorias fortes que continuam ativas, o campo problemático do literário tem se esvaziado sistematicamente de juízos seguros, plenos de certezas. Ressalta-se, no entanto, importância de Mikhail Bakhtin porque graças a ele é possível compreender que o eixo literário é fundamentalmente multivalente, dialógico, polifônico, pois se realiza através de uma interdiscursividade plena de tensões ideológicas e axiológicas, bem como por meio de um conjunto de construções sociais, textuais e discursivas.

O crítico toma como exemplo quatro espaços literários para exemplificar as qualidades diferenciais de cada um desses cinco atuantes (o local, o nacional, o marginal, o institucional e o universal): Iugoslávia, Itália, Canadá e Polônia. Esses contextos servem de base para mostrar com eloquência que a Weltliteratur está em constante processo de formação. 

O capítulo sobre os saberes novelescos[6] é um estudo consagrado ao romance, cujo propósito é o de chamar a atenção sobre algumas obras e tendências que refletem as tensões temáticas e as buscas formais do romance moderno. 

A literatura do século XX, cada vez mais intertextual e interdiscursiva, tem investido o “o ideal grego” de momentos dialéticos que em obras de J. Joyce, T. Mann, E. O´Neill, A. Döblin, H. Broch, João Guimarães Rosa, A. Roa Bastos (e recentemente os textos dramáticos de H. Müller) modificam visões do mundo que se baseavam na função hermenêutica explicativa do mito.

 O emprego da expressão romance moderno pressupõe, segundo o autor, a compreensão historicizante do romance e uma herança de tradições escolhidas de maneira paradigmática. Krysinski discorre em seu estudo sobre uma via evolutiva do romance moderno que vai de Rabelais a Cervantes, passando por Cortázar, Roa Bastos, Calvino, Kundera e todos os escritores que pensam o romance como instrumento de cognição: a evolução do romance como demonstração de trocas e transformações formais, mas também como produção de saberes. As reflexões de Krysinski abrangem a psicologia subterrânea de Dostoievski, a funcionalidade de autoanálise de Svevo e o descobrimento de si mesmo em Mishima, para exemplificar como os problemas cognitivos têm encontrado acolhimento nas formas do romance para atualizar as novas exigências do conhecimento.


[1] Doutoranda do PosLit/Universidade de Brasília - UnB
[2] Wladimir KRYSINSKI é professor de literatura comparada, de teoria literária e de literaturas eslavas na Universidade de Montreal/Canadá. Especialista em literatura do século XX, suas investigações estão centradas na modernidade, mais especificamente, nas metamorfoses do texto moderno, a partir de uma perspectiva ao mesmo tempo semiótica, filosófica, comparativa e psicoanalítica.
[3] Comparación y Sentido – Várias localizaciones y convergencias literarias. Fundo Editorial UCSS. Lima: 2006.
[4] O que se entende por mundialização se expressa em termos de globalização de mercados, capitais, superação de contextos nacionais e generalizada informatização da comunicação. Esses elementos, ao remeter à propagação de valores relacionados com todos os campos da atividade humana, acabam por refletir também direta ou indiretamente a prática da literatura, bem como sua teorização.  
[5] A primeira noção de literatura universal foi concebida por Goethe, na primeira metade do século XIX, quando evoca em suas conversações com Eckermann a época futura de uma literatura do mundo (weltliteratur). 
[6] KRYSINSKI, Wladimir. Comparación y sentido. Varias focalizaciones y convergências literárias, p.93.