quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Visões do texto, de Luciano Ponzio - prefácio por João Vianney Cavalcanti Nuto


UMA SEMIÓTICA DIALÓGICA

João Vianney Cavalcanti Nuto[1]

            O que “significa” uma obra de arte? Como podemos compreendê-la em sua especificidade artística? O que uma composição artística nos convida a “ver”? Luciano Ponzio discute esta complexa questão a partir da noção de texto artístico como texto de afiguração ou escritura. Seguindo os conceitos da Semiótica – privilegiando o pensamento de Peirce, mas sem deixar de dialogar com a Semiologia de Barthes e reflexões de pensadores como Lévinas, Deleuze, Merleau-Ponty, Blanchot, entre outros –, este livro parte da concepção de texto como qualquer organização de signos (verbais ou de qualquer outra natureza) dotada de sentido. Para analisar as características e efeitos do texto artístico, Luciano Ponzio distingue a forma de composição e as potencialidades de sentido dos textos elaborados esteticamente (textos de afiguração), em contraste com os textos voltados para a comunicação pragmática (textos de representação). Partindo da dicotomia, proposta por Bataille, entre olhar e visão, o autor dialoga com Peirce e Lévinas, observando certa relação uma duplicidade do signo icônico com o seu referente, em que esse tipo de signo não apenas aponta para o referente, mas se transforma, de certa maneira, em seu duplo (o que não quer dizer cópia), em um processo de afiguração que extrapola a função de representação. Esse transbordamento afigurativo é que amplia – invocando as concepções de Bataille – o olhar, gerando a visão. Seguindo a concepção de Lévinas, Ponzio define o texto de escritura (ou de afiguração) como aquele que ultrapassa a remissão ao significado convencionado.

Ao longo de todo o livro, Ponzio trava um diálogo com Mikhail Bakhtin ao associar os conceitos de representação e afiguração com a classificação dos gêneros do discurso em primários (da vida quotidiana) e secundários (de elaboração mais complexa, oriundos de relações sociais mais formalizadas). Por esta distinção, os textos pragmáticos de circulação quotidiana são textos primários, de significação unívoca, fechada; já os textos artísticos, dos mais densos entre os textos secundários, permitem uma multiplicidade de sentidos, que transcende o momento histórico de sua produção e a própria relação com as circunstâncias biográficas de seu autor. A partir dessa distinção, Ponzio concentra suas reflexões nas características do texto artístico, com base no princípio de que o complexo permite elucidar melhor o simples; e também, concordando com Kierkegaard, com a noção de que a aparente simplicidade de certas composições artísticas não é espontânea, mas laboriosamente alcançada.
            
           Contudo a distinção entre texto comum e texto artístico não implica, de maneira alguma, uma abordagem formalista. Não se trata – como no Formalismo Russo – de apontar uma essência imanente do artístico pelo contraste puramente formal com o não artístico. Seguindo a visão dialógica – em que Bakhtin é uma referência constante – Luciano Ponzio tem sempre em mente a concepção discursiva de enunciado, ainda que utilize muito mais a palavra “texto”. Trata-se de analisar o texto não apenas como uma composição formal, mas como um ato – e uma potencialidade de ato, já que uma composição textual prevê a geração de sentidos diversos em futuras leituras, sendo somente por meio de sua realização como discurso que a composição textual ganha sentido.
           
            O diálogo com Mikhail Bakhtin conjuga-se com outra presença marcante em Visões do texto, como artista e pensador: Kazimir Malevitch. Ao analisar a arte de Malevitch, com a teorização do artista sobre a própria obra, o Suprematismo, Ponzio reflete sobre o processo de afiguração como transbordamento do signo icônico em relação ao referente. A pintura, como texto de escritura, não visa a simplesmente representar o “real” na tela, mas a recriá-lo. Assim, a afiguração pictórica cria uma nova realidade, cuja relação com o referente representado pode ser muito tênue, ou mesmo ausente, em que a visão do autor-artista transfigura o olhar do autor-pessoa. Cabe ao contemplador do texto de afiguração compreender a visão (em termos de Mikhail Bakhtin, o objeto estético) da arquitetônica da obra, em vez de detectar, na obra, o objeto do olhar, pois isso, quando possível, deturpa a afiguração, reduzindo-a à representação. A representação de um cachimbo na tela não é um cachimbo, como adverte o famoso quadro de Magritte; por outro lado, cobrar do autor-artista a confirmação verbal de que “isto é um galo” (ironia de um personagem de D. Quixote com a notória incompetência de um pintor), é querer reduzir a visão ao olhar, a afiguração à representação, a alteridade à identidade. Por outro lado, em consonância com Lévinas e Malevitch, Ponzio observa, no texto de afiguração, uma potencialidade performativa, criadora de uma realidade puramente sígnica, que se acrescenta ao mundo representado. Essa potencialidade performativa também têm consequências ideológicas, pois, em vez de simplesmente reproduzir a ideologia estética vigente, o inacabamento do texto de afiguração a põe à prova e a questiona.

Prosseguindo seu diálogo com Bakhtin, Ponzio reflete sobre a responsabilidade ética dos atos gerados tanto na produção quanto na recepção do texto artístico. Por essa reflexão, o autor passa a examinar a responsabilidade específica do texto de escritura. Para o Ponzio, os textos primários envolvem a responsabilidade que Bakhtin – em Para uma filosofia do ato responsável – denomina “responsabilidade especial”, isto é, uma responsabilidade puramente técnica, o que permite que os textos primários sejam facilmente substituíveis, pois são textos que respondem por funções meramente comunicativas, abrangendo sentidos bem especificados e limitados. Já o texto artístico, por sua densidade estética, envolve uma responsabilidade não transferível a outros textos. A responsabilidade do texto artístico está diretamente ligada à sua abertura semiótica, pois esse tipo de texto não propõe simplesmente transmitir informações, nem oferecer um enigma a ser decifrado, mas, no dizer do escritor Osman Lins, deflagrar sentidos. Trata-se de uma responsabilidade que advém não somente do autor-pessoa (quem escreve e publica), mas daquele elemento intrínseco e fundamental, para a realização das potencialidades do texto artístico, que Bakhtin denomina autor-criador.

Ainda seguindo Bakhtin, demonstra Ponzio que a afiguração só é possível por meio do distanciamento estético (exotopia): o autor-pessoa cria o autor-criador quando, de certa forma, consegue distanciar-se da imersão nas próprias circunstâncias, para assim ter uma visão global, uma arquitetônica, que ultrapasse a mera representação do objeto. É esse distanciamento, com o excedente de visão que dele resulta, é que permite a crítica à ideologia automatizada nos textos de representação.

Ciente de que uma obra só se realiza plenamente em processo dialógico, Ponzio chama a atenção para o fato de que um texto de afiguração (texto de escritura) pode ter seu potencial empobrecido por uma leitura primária, aquela que busca, em um texto de escritura, somente a representação, leitura redutora que contamina até mesmo certas abordagens críticas; leitura que reduz a obra de arte ao transferi-la para o mundo dos objetos, já que o sentindo artístico transcende a pura função pragmática, em um transbordamento estético que pode ser encontrado até mesmo em certos utensílios. Seria, portanto uma traição à riqueza artística de uma obra lê-la buscando o sentindo unívoco de um texto de representação, o que equivale também a reduzir sua responsabilidade plena à responsabilidade técnica. Contudo, isto não significa que o autor defenda a contemplação da obra artística como pura fruição, associando-a diretamente à noção de “arte pela arte”. A riqueza e densidade de sentidos de uma obra implica uma relação entre arte e vida, que, segundo Bakhtin, não é mimética, mas ética. O leitor do texto artístico deve responder ativamente à experiência estético-ética, incorporando-a à própria vida (não necessariamente de maneira direta e pragmática), em vez de adotar a postura puramente hedonista de fruidor. Igualmente em diálogo com Bakhtin, Ponzio defende que a contemplação artística não é mera “recepção” – termo que implica uma noção de simples transferência de um sentido completamente dado – mas compreensão responsiva. Compreender, neste caso, não é apenas assimilar o texto, mas estabelecer uma relação dialógica em que a alteridade do leitor lhe agregue sentidos potenciais.  Trata-se, portanto, de (utilizando um termo de Bakhtin), tornar-se autor-contemplador.

As reflexões semióticas de Visões do texto ultrapassam a noção de texto como mero tecido de signos, como sistema abstraído das interações da vida social- limitação de uma visão estruturalista que Bakhtin critica – em função de um estudo da linguagem que contemple a enunciação. Ao privilegiar a dimensão interpretativa da Semiótica de Pierce em diálogo com o pensamento de Bakhtin – demonstrando que as reflexões de Bakhtin sobre o texto verbal também se aplicam a outros meios semióticos – Luciano Ponzio nos oferece uma semiótica que explica o fenômeno do texto artístico em seu dialogismo. Uma semiótica dialógica. 



[1] Professor Adjunto de Teoria da Literatura da Universidade de Brasília (UnB)
Coordenador do Grupo de Pesquisa Literatura e Cultura da Universidade de Brasília (UnB)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Participe deste blog. Deixe aqui sua opinião, suas críticas e sugestões. Somos um espaço aberto de participação, de criação coletiva. Seremos, sempre, um blog "inacabado", em evolução, em transformação, dialogando com novas ideias e conceitos.