Um texto para Antonio Candido
João Félix
Escrever um necrológio nunca é tarefa fácil. A
pensar em Antonio Candido (1918-2017) as palavras tornam-se ainda mais etéreas.
Homem que viveu o século inteiro. Viu todas as transformações por que passou a
universidade brasileira, sendo protagonista em quase todas elas. Criador de
conceitos fundamentais da teoria e da crítica literária. Investigador
infatigável da coisa brasileira. Homem de texto leve e profundo, cuja limpidez
era elogiada por todos os seus leitores, Antonio Candido é hoje uma escola.
Sobre ele, muito já se escreveu. Aliás, sobre
ele temos a maior fortuna crítica produzida ainda quando ele estava vivo. Está,
nesse sentido, pareado a Sílvio Romero, outro autor bastante lido e comentado.
Foi por Sílvio Romero que Antonio Candido começou sua carreira universitária,
com a tese de livre-docência Introdução
ao método crítico de Sílvio Romero. Pouco antes, entre 1941 e 1944, junto
com outros nomes, Candido criaria a revista Clima,
que reuniria uma massa de intelectuais paulistas em torno de um projeto que
consistia em pensar o Brasil a partir (mas não só) de suas fontes europeias,
nas mais diversas vertentes, desde o cinema, passando pela sociologia e pela
literatura. Foi também nesse tempo que contribuiu com importantes jornais,
ajudando a formatar o conceito de crítica literária a partir da imprensa, bem
diferente do que se vê hoje nas faculdades de letras mundo afora.
Na década seguinte, Candido escreveria o livro
que poderia ser considerado sua obra prima: Formação
da literatura brasileira: momentos decisivos, no qual levou dez anos escrevendo.
O aposto explicativo depois do título principal causou, e ainda causa, muito
imbróglio interpretativo: trata-se de estudar a literatura brasileira
justamente no instante em que ela adquiria, por assim dizer, certa autonomia, quer
estética, quer política, de modo a criar “uma continuidade literária”, uma
“tradição”, conforme lemos no 1o capítulo. Essa ideia deu margem ao
repensamento de inúmeras outras literaturas mundo afora, cujo processo
formativo coincidiu com o nosso, isto é, cuja economia fora, ou é considerada
“periférica” ou “colonial”. É uma ideia decisiva no contexto das chamadas
“culturas locais” – pensando-se em E. P. Thompson, Homi Bhabha, Clifford
Geertz, ou dos “orientalismos”, pensando-se em Edward Said, dentre outros,
autores fundamentais na virada cultural da segunda metade do século passado –
vencendo-se, segundo esses autores entendem, o estigma que a literatura belles letres causou, desde o século XIX,
e fortíssimo nos países centrais, e especialmente francófilos como o nosso, passando-se
a interpretar a literatura como expressão de um povo na sua ingrata lição de
“se pensar”. A literatura, especialmente de países periféricos, é um “motor”
tensivo que oscila entre o cosmopolitismo e o localismo, termos caros a todos
esses especialistas citados.
Obviamente que não poderíamos deixar de fora
ensaios excepcionais, escritos depois dessas duas décadas decisivas, quando
Candido inscreve-se como criador da cadeira de teoria literária na USP, e mesmo
do curso de letras, cuja existência ainda era errática e sofrível. Ensaios como
os que lemos em A educação pela noite,
ou em O discurso e a cidade, em Brigada ligeira ou em Tese e antítese. Seu modelo de interpretação da coisa literária a essa altura
alcançava voos altos, no Brasil e na América Latina. Sua penetração talvez só
não tenha sido maior em virtude de nosso provinciano idioma. A tese de Pierre
Bourdieu, por exemplo, exposta com pormenores em As regras da arte, gravita em torno de ideias concebidas por
Candido muitos anos antes (claro, sem citá-lo). A dialética que conforma a
cultura dos países centrais e dos periféricos (em torno de modelos e réplicas
de modelos), concebida por Oswald de Andrade em termos de “antropofagia”,
ganharia contornos definitivos na pena de Candido. A dialética dos contrários,
exposta com veemência e rigor analítico por Alfredo Bosi, em título similar, Dialética da colonização, também orbita
em insights proferidos por ideias de
Candido. Para terminar, a radicalização da interpretação machadiana, objeto de
vários livros de Roberto Schwarz, também tem conta na folha de Antonio Candido.
A par disso tudo, a política não poderia ser
considerada por ele, obviamente, um fator menor na conjuntura de seus escritos.
Socialista democrático, Candido participou ativamente da criação do Partido dos
Trabalhadores, cujas ideias foram gestadas em coparticipação com Florestan
Fernandes, Alfredo Bosi, Francisco Weffort, Francisco de Oliveira, dentre
outros. Celso Lafer aponta dois lances de dados na formação política de
Candido: a “resistência à opressão” e
a “afirmação de uma identidade socialista”
(D’INCÃO et SCARABÔTOLO, Orgs., 1992, p. 271). Esses dois eixos comungam com a
ideia, anti-estalinista por excelência, de um estado opressor sobre a
comunidade dos viventes. Sem entender isso, fica-se no vazio de compreender o
pensamento de Candido, visualizando-o como oriundo de algum tipo de utopia
irrealizável, alguma política “do ar”, vinda de algum gabinete sem contato com
a vida. Candido já havia passado bastante tempo junto aos trabalhadores rurais do
Interior de São Paulo, tempo em que construiu sua tese Parceiros do Rio Bonito, um ensaio de etnografia que se centra nos
modos de convivência do homem caipira, e cuja ascendência devemos, talvez, aos
belos ensaios de Sérgio Buarque de Holanda, de quem Candido sentia especial
afeto e “parentesco” ideológico. Daí que a política tenha especial interesse na
carreira de Candido fica fácil de compreender: ela redimensiona o eixo
literário para a dimensão civilizacional da vida humana.
Candido entende que, no século XX, o homem
brasileiro entrou muito cedo na sociedade de massas, consumindo, ao sabor da
propaganda mais imediata os produtos descartáveis para ele oferecidos. Sem
parâmetros estéticos estáveis adquiridos por educação razoável, este homem, em
suas palavras, não lhe teria assegurado os critérios de mediação que outros
países conquistaram antes da difusão dos mass
media, de modo que, lendo essa crescente mobilização do capitalismo tardio
no Brasil, Candido apresenta uma sintomática bastante relevante para o status questionis do país, a partir de
1945, e que continua, infelizmente, bastante atual hoje:
“Os analfabetos eram no Brasil, em 1890, cerca
de 84%; em 1920 passaram a 75%; em 1940 eram 57%. A possibilidade de leitura
aumentou, pois, consideravelmente. Muito mais, todavia, aumentou o número
relativo de leitores, possibilitando a existência, sobretudo a partir de 1930,
de numerosas casas editoras, que antes quase não existiam (...) mas este novo
público, à medida que crescia, ia sendo rapidamente conquistado pelo grande
desenvolvimento dos novos meios de comunicação (...) as tradições literárias
começavam a não mais funcionar como estimulante (...) as formas escritas de
expressão entravam em relativa crise, ante a concorrência de meios expressivos
novos, ou novamente reequipados, para nós, – como o rádio, o cinema, o teatro
atual, as histórias em quadrinhos (...) para quem não se enquadrou numa certa
tradição, o livro apresenta limitações que aquelas vias superam, diminuindo a
exigência de concentração espiritual” (CANDIDO, 2008, p. 144-5).
O texto é longo mas espero ter deixado claro as
questões a que se propõe Candido. Sua análise não deixa passar em branco o
quanto, dialeticamente, se ganhou estética e politicamente com a introdução dos
novos meios discursivos, muito embora, por isso a dialética, se segue uma
debandada do meio expressivo, até agora, mais importante em termos de literatura:
o livro.
Havia dito no começo que Candido foi alvo de
leituras certeiras ao longo da vida. Importa destacar, aqui, que o autor era
grato por todas as sugestões e discordâncias que recebeu ao longo da vida. Em
tempos dogmáticos como o nosso, trata-se de uma bela lição de honestidade
intelectual.
Com Haroldo de Campos, um dos primeiros a
escrever sobre o Formação, teve uma
discussão a respeito de um dos conceitos capitais do livro, o de “manifestações
literárias”, que, como se sabe, atinge claramente autores como Gregório de
Matos, especialmente, objeto da dissensão proposta por Campos. Esse mesmo
conceito ganha, em outra vertente interpretativa, objeção de João Adolfo
Hansen, no seu A sátira e o engenho.
Tomando como base dados do regime colonial, Hansen chega à conclusão de que
havia um tipo de “sistema” literário proposto pelos escritores do Brasil, com
autores, obras e destinatários, o que contradiria a tese de Candido. É
interessante notar que Campos foi orientando de doutorado de Candido na USP, o
que originou a tese Morfologia do
Macunaíma, de cunho estruturalista, contrária, como se sabe aos
pressupostos de Candido. Impossível abertura intelectual maior que essa...
Contra Affonso Romano de Sant’Anna produziu um
dos textos mais saborosos de sua crítica: “Duas vezes a passagem do ‘dois ao
três’”, encontrado hoje em Textos de
intervenção. Sobre a análise estrutural proposta por Sant’Anna, Candido
opunha um terceiro eixo interpretativo: a sociedade como presente no texto
através da redução estrutural, isto é, elementos absorvidos pelo autor e pela
mediação da linguagem passam a integrar o texto e, portanto, devem ser levados
em conta na hora de catalisar a crítica literária.
Atualmente, o livro Formação ainda ganhou nova polêmica, exposta com vigor analítico
por Luís Augusto Fischer, em diversos textos de revistas e jornais. Quando se
soube da morte de Candido, o jornal O
Estado de São Paulo providenciou uma seleção de textos comentando a obra de
Candido, dos quais constava a objeção ainda de “Sistema Literário”, que Fischer
opunha questionando por que Candido não havia comparado a literatura brasileira
a outras literaturas periféricas, como a norte-americana, ou as
latino-americanas, e não, como foi o caso, a de literaturas europeias apenas. Uma
omissão algo imperdoável, diria Fischer, porque essas literaturas originaram-se
de condições semelhantes às nossas.
Os pontos mencionados servem de baliza às
muitas questões que levanta a obra viva de Antonio Candido. A prolífica obra
ainda dará seu testemunho aos muitos estudiosos que adentrarem nesta selva selvaggia que é a literatura
brasileira contemporânea, ou mesmo, as mais “antigas”, como a colonial, a
árcade, a romântica. Estudiosos que consideram a periodização algo importante
têm nele forte ascendência. Para aqueles seus fãs, fica a sensação de que
Candido ainda poderia falar algo mais; de que muito ele ainda teria a dizer
para a análise nos quadros da teoria literária. Como o padre Antonio Vieira,
que viveu todo o século XVII, Candido testemunhou tudo o que mudou e o que
ficou no Brasil. Vai-se o grande homem. Fica sua grande obra.
Bibliografia mínima para se conhecer Antonio
Candido
Do autor:
CANDIDO, Antonio. Brigada ligeira e outros
escritos. São Paulo: Edunesp, 1992.
_____. Tese
e antítese. Ensaios. 4ed. São Paulo: T.A. Queirós, 2000.
_____. O
discurso e a cidade. 3ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.
_____. Formação
da literatura brasileira: momentos decisivos. 10ed. Rio de Janeiro: Ouro
sobre azul, 2006.
_____. Literatura
e sociedade. Estudos de teoria e história literária. 10ed. Rio de Janeiro:
Ouro sobre azul, 2008.
_____. A
educação pela noite. 6ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.
Sobre o Autor:
LAFER, Celso (Org.). Esboço de figura. Homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas
Cidades, 1979.
D’INCAO, Maria Angela et SCARABÔTOLO, Eloísa
Faria (Orgs.). Ensaios sobre Antonio
Candido. São Paulo: Cia das Letras/Instituto Moreira Salles, 1992.
PEDROSA, Celia. Antonio Candido: a palavra empenhada. São Paulo: Edusp/Rio de
Janeiro: Eduff, 1994.
SERNA, Jorge Ruedas de la (Org.). História e literatura: homenagem a Antonio
Candido. São Paulo: Edunicamp/Imprensa Oficial, 2003.
Muito bom, João!!!!
ResponderExcluirTexto belíssimo João. E devo ainda dizer que quando você escreveu sobre Bourdieu citar Candido em sua tese, me recordei automaticamente que em A República das Letras, a autora Pascale Casanova, ex-aluna de Bourdieu, assim como Michele Pétit, em A arte de ler ou como resistir à adversidade, citam em várias partes de seus livros o autor. Seu texto me fez refletir sobre o alcance da crítica literária que Candido representou e representa tão bem. Agradeço por suscitar reflexões tão importantes.
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