segunda-feira, 3 de julho de 2017

Um texto para Antonio Candido

João Félix


Escrever um necrológio nunca é tarefa fácil. A pensar em Antonio Candido (1918-2017) as palavras tornam-se ainda mais etéreas. Homem que viveu o século inteiro. Viu todas as transformações por que passou a universidade brasileira, sendo protagonista em quase todas elas. Criador de conceitos fundamentais da teoria e da crítica literária. Investigador infatigável da coisa brasileira. Homem de texto leve e profundo, cuja limpidez era elogiada por todos os seus leitores, Antonio Candido é hoje uma escola.
Sobre ele, muito já se escreveu. Aliás, sobre ele temos a maior fortuna crítica produzida ainda quando ele estava vivo. Está, nesse sentido, pareado a Sílvio Romero, outro autor bastante lido e comentado. Foi por Sílvio Romero que Antonio Candido começou sua carreira universitária, com a tese de livre-docência Introdução ao método crítico de Sílvio Romero. Pouco antes, entre 1941 e 1944, junto com outros nomes, Candido criaria a revista Clima, que reuniria uma massa de intelectuais paulistas em torno de um projeto que consistia em pensar o Brasil a partir (mas não só) de suas fontes europeias, nas mais diversas vertentes, desde o cinema, passando pela sociologia e pela literatura. Foi também nesse tempo que contribuiu com importantes jornais, ajudando a formatar o conceito de crítica literária a partir da imprensa, bem diferente do que se vê hoje nas faculdades de letras mundo afora.
Na década seguinte, Candido escreveria o livro que poderia ser considerado sua obra prima: Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, no qual levou dez anos escrevendo. O aposto explicativo depois do título principal causou, e ainda causa, muito imbróglio interpretativo: trata-se de estudar a literatura brasileira justamente no instante em que ela adquiria, por assim dizer, certa autonomia, quer estética, quer política, de modo a criar “uma continuidade literária”, uma “tradição”, conforme lemos no 1o capítulo. Essa ideia deu margem ao repensamento de inúmeras outras literaturas mundo afora, cujo processo formativo coincidiu com o nosso, isto é, cuja economia fora, ou é considerada “periférica” ou “colonial”. É uma ideia decisiva no contexto das chamadas “culturas locais” – pensando-se em E. P. Thompson, Homi Bhabha, Clifford Geertz, ou dos “orientalismos”, pensando-se em Edward Said, dentre outros, autores fundamentais na virada cultural da segunda metade do século passado – vencendo-se, segundo esses autores entendem, o estigma que a literatura belles letres causou, desde o século XIX, e fortíssimo nos países centrais, e especialmente francófilos como o nosso, passando-se a interpretar a literatura como expressão de um povo na sua ingrata lição de “se pensar”. A literatura, especialmente de países periféricos, é um “motor” tensivo que oscila entre o cosmopolitismo e o localismo, termos caros a todos esses especialistas citados.

Obviamente que não poderíamos deixar de fora ensaios excepcionais, escritos depois dessas duas décadas decisivas, quando Candido inscreve-se como criador da cadeira de teoria literária na USP, e mesmo do curso de letras, cuja existência ainda era errática e sofrível. Ensaios como os que lemos em A educação pela noite, ou em O discurso e a cidade, em Brigada ligeira ou em Tese e antítese. Seu modelo de interpretação da coisa literária a essa altura alcançava voos altos, no Brasil e na América Latina. Sua penetração talvez só não tenha sido maior em virtude de nosso provinciano idioma. A tese de Pierre Bourdieu, por exemplo, exposta com pormenores em As regras da arte, gravita em torno de ideias concebidas por Candido muitos anos antes (claro, sem citá-lo). A dialética que conforma a cultura dos países centrais e dos periféricos (em torno de modelos e réplicas de modelos), concebida por Oswald de Andrade em termos de “antropofagia”, ganharia contornos definitivos na pena de Candido. A dialética dos contrários, exposta com veemência e rigor analítico por Alfredo Bosi, em título similar, Dialética da colonização, também orbita em insights proferidos por ideias de Candido. Para terminar, a radicalização da interpretação machadiana, objeto de vários livros de Roberto Schwarz, também tem conta na folha de Antonio Candido.
A par disso tudo, a política não poderia ser considerada por ele, obviamente, um fator menor na conjuntura de seus escritos. Socialista democrático, Candido participou ativamente da criação do Partido dos Trabalhadores, cujas ideias foram gestadas em coparticipação com Florestan Fernandes, Alfredo Bosi, Francisco Weffort, Francisco de Oliveira, dentre outros. Celso Lafer aponta dois lances de dados na formação política de Candido: a “resistência à opressão” e a “afirmação de uma identidade socialista” (D’INCÃO et SCARABÔTOLO, Orgs., 1992, p. 271). Esses dois eixos comungam com a ideia, anti-estalinista por excelência, de um estado opressor sobre a comunidade dos viventes. Sem entender isso, fica-se no vazio de compreender o pensamento de Candido, visualizando-o como oriundo de algum tipo de utopia irrealizável, alguma política “do ar”, vinda de algum gabinete sem contato com a vida. Candido já havia passado bastante tempo junto aos trabalhadores rurais do Interior de São Paulo, tempo em que construiu sua tese Parceiros do Rio Bonito, um ensaio de etnografia que se centra nos modos de convivência do homem caipira, e cuja ascendência devemos, talvez, aos belos ensaios de Sérgio Buarque de Holanda, de quem Candido sentia especial afeto e “parentesco” ideológico. Daí que a política tenha especial interesse na carreira de Candido fica fácil de compreender: ela redimensiona o eixo literário para a dimensão civilizacional da vida humana.
Candido entende que, no século XX, o homem brasileiro entrou muito cedo na sociedade de massas, consumindo, ao sabor da propaganda mais imediata os produtos descartáveis para ele oferecidos. Sem parâmetros estéticos estáveis adquiridos por educação razoável, este homem, em suas palavras, não lhe teria assegurado os critérios de mediação que outros países conquistaram antes da difusão dos mass media, de modo que, lendo essa crescente mobilização do capitalismo tardio no Brasil, Candido apresenta uma sintomática bastante relevante para o status questionis do país, a partir de 1945, e que continua, infelizmente, bastante atual hoje:
“Os analfabetos eram no Brasil, em 1890, cerca de 84%; em 1920 passaram a 75%; em 1940 eram 57%. A possibilidade de leitura aumentou, pois, consideravelmente. Muito mais, todavia, aumentou o número relativo de leitores, possibilitando a existência, sobretudo a partir de 1930, de numerosas casas editoras, que antes quase não existiam (...) mas este novo público, à medida que crescia, ia sendo rapidamente conquistado pelo grande desenvolvimento dos novos meios de comunicação (...) as tradições literárias começavam a não mais funcionar como estimulante (...) as formas escritas de expressão entravam em relativa crise, ante a concorrência de meios expressivos novos, ou novamente reequipados, para nós, – como o rádio, o cinema, o teatro atual, as histórias em quadrinhos (...) para quem não se enquadrou numa certa tradição, o livro apresenta limitações que aquelas vias superam, diminuindo a exigência de concentração espiritual” (CANDIDO, 2008, p. 144-5).
O texto é longo mas espero ter deixado claro as questões a que se propõe Candido. Sua análise não deixa passar em branco o quanto, dialeticamente, se ganhou estética e politicamente com a introdução dos novos meios discursivos, muito embora, por isso a dialética, se segue uma debandada do meio expressivo, até agora, mais importante em termos de literatura: o livro.
Havia dito no começo que Candido foi alvo de leituras certeiras ao longo da vida. Importa destacar, aqui, que o autor era grato por todas as sugestões e discordâncias que recebeu ao longo da vida. Em tempos dogmáticos como o nosso, trata-se de uma bela lição de honestidade intelectual.
Com Haroldo de Campos, um dos primeiros a escrever sobre o Formação, teve uma discussão a respeito de um dos conceitos capitais do livro, o de “manifestações literárias”, que, como se sabe, atinge claramente autores como Gregório de Matos, especialmente, objeto da dissensão proposta por Campos. Esse mesmo conceito ganha, em outra vertente interpretativa, objeção de João Adolfo Hansen, no seu A sátira e o engenho. Tomando como base dados do regime colonial, Hansen chega à conclusão de que havia um tipo de “sistema” literário proposto pelos escritores do Brasil, com autores, obras e destinatários, o que contradiria a tese de Candido. É interessante notar que Campos foi orientando de doutorado de Candido na USP, o que originou a tese Morfologia do Macunaíma, de cunho estruturalista, contrária, como se sabe aos pressupostos de Candido. Impossível abertura intelectual maior que essa...
Contra Affonso Romano de Sant’Anna produziu um dos textos mais saborosos de sua crítica: “Duas vezes a passagem do ‘dois ao três’”, encontrado hoje em Textos de intervenção. Sobre a análise estrutural proposta por Sant’Anna, Candido opunha um terceiro eixo interpretativo: a sociedade como presente no texto através da redução estrutural, isto é, elementos absorvidos pelo autor e pela mediação da linguagem passam a integrar o texto e, portanto, devem ser levados em conta na hora de catalisar a crítica literária.
Atualmente, o livro Formação ainda ganhou nova polêmica, exposta com vigor analítico por Luís Augusto Fischer, em diversos textos de revistas e jornais. Quando se soube da morte de Candido, o jornal O Estado de São Paulo providenciou uma seleção de textos comentando a obra de Candido, dos quais constava a objeção ainda de “Sistema Literário”, que Fischer opunha questionando por que Candido não havia comparado a literatura brasileira a outras literaturas periféricas, como a norte-americana, ou as latino-americanas, e não, como foi o caso, a de literaturas europeias apenas. Uma omissão algo imperdoável, diria Fischer, porque essas literaturas originaram-se de condições semelhantes às nossas.

Os pontos mencionados servem de baliza às muitas questões que levanta a obra viva de Antonio Candido. A prolífica obra ainda dará seu testemunho aos muitos estudiosos que adentrarem nesta selva selvaggia que é a literatura brasileira contemporânea, ou mesmo, as mais “antigas”, como a colonial, a árcade, a romântica. Estudiosos que consideram a periodização algo importante têm nele forte ascendência. Para aqueles seus fãs, fica a sensação de que Candido ainda poderia falar algo mais; de que muito ele ainda teria a dizer para a análise nos quadros da teoria literária. Como o padre Antonio Vieira, que viveu todo o século XVII, Candido testemunhou tudo o que mudou e o que ficou no Brasil. Vai-se o grande homem. Fica sua grande obra.

Bibliografia mínima para se conhecer Antonio Candido

Do autor:
CANDIDO, Antonio. Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Edunesp, 1992.
_____. Tese e antítese. Ensaios. 4ed. São Paulo: T.A. Queirós, 2000.
_____. O discurso e a cidade. 3ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.
_____. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 10ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
_____. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. 10ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2008.
_____. A educação pela noite. 6ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

Sobre o Autor:
LAFER, Celso (Org.). Esboço de figura. Homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
D’INCAO, Maria Angela et SCARABÔTOLO, Eloísa Faria (Orgs.). Ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Cia das Letras/Instituto Moreira Salles, 1992.
PEDROSA, Celia. Antonio Candido: a palavra empenhada. São Paulo: Edusp/Rio de Janeiro: Eduff, 1994.
SERNA, Jorge Ruedas de la (Org.). História e literatura: homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Edunicamp/Imprensa Oficial, 2003.

2 comentários:

  1. Texto belíssimo João. E devo ainda dizer que quando você escreveu sobre Bourdieu citar Candido em sua tese, me recordei automaticamente que em A República das Letras, a autora Pascale Casanova, ex-aluna de Bourdieu, assim como Michele Pétit, em A arte de ler ou como resistir à adversidade, citam em várias partes de seus livros o autor. Seu texto me fez refletir sobre o alcance da crítica literária que Candido representou e representa tão bem. Agradeço por suscitar reflexões tão importantes.

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