O sertão-mundo e as sinas da
escritura
Juliana Mantovani*
Saboroso
encontro do ler e do escrever! Tão rosianamente construídas as sentenças, a sintaxe;
um frasear gostoso, um palavreado que se apropriou do róseo modo de sentir e de
dizer. Intertextualidade nas linhas, intertextualidade nas estórias. O
leitor-autor que escreveu essas páginas é tomado de saudades da palavra
primeira, das primeiras estórias – que Guimarães Rosa, com sua
poética-sertaneja, sabe contar! É essa saudade do antes-dito, do primeiro
lugar, que impele esse escritor à travessia da escritura: sacro sertão, sinas é escrito sob a égide salutar do encontro com
as origens, ou da busca por percorrer as palavras e as travessias do sertão e
de, espantosamente, se deparar consigo mesmo.
Nesse
livro, o leitor acostumado com a linguagem sertaneja logo se acalenta e se desembaralha
alegremente no sertão e nas letras. Mas ao leitor desajeitado, que desconhece
os percursos do sertão, a medida da palavra será a medida do enredo: passo a
passo, pé ante pé, o narrador Florduardo vai tomando forma, vai ganhando nome,
vai se tornando real. Esse narrador-personagem se constrói diante do seu leitor
e, assim, palavra e corpo, literatura e vida vão se emoldurando.
Como uma
boa narrativa em primeira pessoa, sacro
sertão, sinas esconde seus pontos; vai gentilmente, no entanto, dando ao
seu leitor conhecer os seus laços. À semelhança das narrativas míticas,
Florduardo tece sua narrativa costurando seus passos, enquanto seu interlocutor-doutor
vê os fios se entrelaçarem para formar seu tecido de memórias. E igualmente
procede o autor desta valiosa obra, cosendo estórias retiradas do tear de suas lembranças,
do tear de suas origens. É no fuso do discurso literário que se tecem aqui os
novelos tão velhos conhecidos desse escritor. E o ávido leitor que adentra
tantas memórias será também convidado a conhecer a poesia que se personifica em
história. O tecido do texto é sempre esse duplo: o discurso-tecido se tecendo à
medida que o tecelão tece o texto e a si mesmo.
Como
Ariadne a se guiar pelos fios no labirinto, o eu-que-escreve (ou que-narra)
persegue e vai alinhavando com suas agulhas a tessitura do seu texto-vida. E é
isso mesmo que se vê no novelo-livro: nos seus dedos, as palavras-fios estão
entrelaçadas às memórias-linhas; na sua escrita, o alto discurso literário,
acadêmico surge em consonância com a vida que se vive e as estórias
rememoradas.
A
narrativa tecida em sacro sertão, sinas
tem, portanto, o mesmo ponto de partida do sujeito que a escreve: o sertão
periférico de sua vó e o sertão tão político, histórico, social e
intelectualizado pelas mãos de Guimarães Rosa. Por criar narrativas no seu
interior, a tessitura de seu discurso, a trama de seu personagem e a sua
procura de si tomam rumos semelhantes: no tecido do inacabado, do sempre em
construção, o viver e o narrar se fundem.
A
hábil e doce escrita deste livro transforma e transpõe para a palavra literária
toda a magia que envolve os processos de gestação: do tecido do texto, do
mundo, dos seres... E é a voz de Riobaldo que ressoa em ecos no fundo da
memória que se busca preservar. Os causos sertanejos, os discursos orais, a
poética-falada se entrelaçam mais uma vez em arte de escrever, e o resultado só
pode ser de alta compreensão literária e de fina sensibilidade humana.
Nessa
narrativa sertaneja de um ex-jagunço, de infância difícil e de muitos
sacrifícios e dúvidas, o leitor se descobre no meio do sertão “onde a sina do
homem está traçada antes mesmo dele parido...”, ao passo que a leitura desta
obra sugere a reconstrução do Brasil, a busca da formação desse país de
linguagem popular, rasteira e plena da oralidade. Assim, a escritura desta
narrativa recorre à palavra anterior à própria escrita, porquanto, no fundo, o
que se busca nas narrativas do sertão é o encontro com os arquétipos humanos.
E para
o autor deste livro, para quem a palavra literária é maneira de gestação, a
forma sincera de criar (ou recriar) a sua própria história perpassa as linhas
da contação de estórias orais. História e estória se tecem dos mesmos fios e a
escrita literária é ferramenta poética de busca do nonada, do anterior, da
origem, das primeiras e primordiais palavras.
O que
viceja no narrador Florduardo é compartilhado com leitor-escritor que se
aventurou nessas paragens de literatura: uma inquietude que impõe a caminhada,
um vazio, uma perda, uma falta. Se “Viver é arrocho de existência”, narrar é
possibilidade de existir. Assim é para o narrador-personagem, assim é para o
seu escritor.
As
estórias que o leitor vai desvendar nesse labirinto são permeadas de remorso e
de solidão, são falas de procura do eu-em-mim-mesmo, dos infernos humanos e da
compreensão da origem da maldade. Florduardo quer conhecer e compreender o
eu-por-trás-de-mim que esconde as latentes maldades humanas e, pleno de um senso
de justiça, de igualdade, narra suas aventuras no sertão e o que ele aprendeu
sobre as questões de poder, de hierarquia, de injustiças e desigualdades.
No seu
sertão (que é o mundo!) e no seu mundo (que é o sertão!), as maldades humanas
se revelam, as dúvidas existenciais afloram, as crenças e misticismos tomam
conta dos homens, a razão e a desrazão se misturam, o bem e o mal pesam e
causam questionamentos... E é num jogo curioso de linguagem sertaneja que se
costuram crendices e estórias, violências e amores, misérias e alegrias, nessa
narrativa permeada de lirismos de paisagens.
O
latifúndio do amor se apodera de Florduardo e também o ensina que vau da vida é
a coragem. Amor, religiosidade, alegrias, arrependimentos e promessas, a
existência do Diabo, o caído-eterno, os pactos, as bem-querências: todos esses
temas de filosofia sertanejo-humano aguardam o leitor, que as encontrará
moldadas pelo inédito da linguagem do trivial, pelo surpreendente da linguagem
do banal.
E na
sintaxe da desrazão, na desrazão da linguagem desaprisionada, haverá igualmente
a presença do humor que subjaz as narrativas sertanejas. O humor da vida, o
humor dos jogos linguísticos: a delícia maior de se ler, deleitar!
Se
Guimarães Rosa povoa este autor, em suas experiências de vida, em suas
experiências literárias, há esse outro convite ao leitor para conhecer o sertão
que é dentro da gente, já que o discurso literário pode conduzir tanto ao
universo filosófico, político, social, quanto ao ambíguo universo dos humanos-seres.
Mas essa
cantiga de se fechar os olhos é preciso ler e decifrar. O leitor é que há-de. O
que se contam nessas páginas é a poética-humana-original, numa leitura de
saudades-encontráveis, num tecido de se repisar o gostoso da linguagem.
Nesse
livro, aliás, a linguagem é maior até mesmo que o seu enredo, a linguagem é
tudo. A linguagem ampliada, deslimitada é que é gênese do mundo: do mundo do
vivido, do mundo lido. E a linguagem poético-sertaneja reinaugurada invade os
ouvidos do leitor, se funde ao seu-existir; e misturada ao discurso literário
se traduz, sobretudo, em (re)criação do mundo em poesia-falada, o que transforma
o pensamento do homem e o desorganiza.
Assim,
a linguagem poética-humana toma conta do leitor, que inebriado, embriagado, se
sente impelido a conviver com essas estórias contadas (“inventadas de juízo”?).
Nessa literatura que se mistura à vida, as letras lidas, os sons escutados se
baralham, formando também no interior dos homens a sua própria poesia.
Viver
estórias inventadas como aquelas da encantadora poética rosiana e, num
exercício de escritura, em meio às rocas, aos fusos, às linhas, alinhavar os
fios e atravessar o labiríntico sujeito-eu, o enovelado livro de si: esse é o convite
do livro que será lido.
Viver
é sempre firme aprendizagens, e o sertão, ah, esse é o rumo, a sina.
Imagem: Jucelino Sales (autor)
Sinas,
veredas, travessias
De língua
brincada, jogada, demudada
de fazer
alegrar os olhos-ouvidos;
De
literatura poético-oral-sertaneja
cujos
encontráveis mistérios são decifrados cá dentro.
-
Aí,
Zé, Opa:
A poesia
que revive e sai em emboscada,
em
romaria, em caravana, em demanda
para
procuração do si-mesmo.
As
prosáveis ideias humanas remexidas
no fundo
da linguagem que (re)cria:
-
Aí,
Zé, Opa!
Esse
verso transversado para os leitores atentos
na
gênese do literário-mundo-do-real.
É
leitura gostosa de deliciar e fechar as janelas
da alma
de adentradas naturezas reminiscentes.
* Mestra em
Literatura pela Universidade de Brasília, Aluna do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Doutorado em Literatura,
da Universidade de Brasília, Professora do Instituto Federal de Brasília e membro do LitCultUnB.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Participe deste blog. Deixe aqui sua opinião, suas críticas e sugestões. Somos um espaço aberto de participação, de criação coletiva. Seremos, sempre, um blog "inacabado", em evolução, em transformação, dialogando com novas ideias e conceitos.