quinta-feira, 4 de maio de 2017

O sertão-mundo e as sinas da escritura

Juliana Mantovani*

Saboroso encontro do ler e do escrever! Tão rosianamente construídas as sentenças, a sintaxe; um frasear gostoso, um palavreado que se apropriou do róseo modo de sentir e de dizer. Intertextualidade nas linhas, intertextualidade nas estórias. O leitor-autor que escreveu essas páginas é tomado de saudades da palavra primeira, das primeiras estórias – que Guimarães Rosa, com sua poética-sertaneja, sabe contar! É essa saudade do antes-dito, do primeiro lugar, que impele esse escritor à travessia da escritura: sacro sertão, sinas é escrito sob a égide salutar do encontro com as origens, ou da busca por percorrer as palavras e as travessias do sertão e de, espantosamente, se deparar consigo mesmo.
Nesse livro, o leitor acostumado com a linguagem sertaneja logo se acalenta e se desembaralha alegremente no sertão e nas letras. Mas ao leitor desajeitado, que desconhece os percursos do sertão, a medida da palavra será a medida do enredo: passo a passo, pé ante pé, o narrador Florduardo vai tomando forma, vai ganhando nome, vai se tornando real. Esse narrador-personagem se constrói diante do seu leitor e, assim, palavra e corpo, literatura e vida vão se emoldurando.
Como uma boa narrativa em primeira pessoa, sacro sertão, sinas esconde seus pontos; vai gentilmente, no entanto, dando ao seu leitor conhecer os seus laços. À semelhança das narrativas míticas, Florduardo tece sua narrativa costurando seus passos, enquanto seu interlocutor-doutor vê os fios se entrelaçarem para formar seu tecido de memórias. E igualmente procede o autor desta valiosa obra, cosendo estórias retiradas do tear de suas lembranças, do tear de suas origens. É no fuso do discurso literário que se tecem aqui os novelos tão velhos conhecidos desse escritor. E o ávido leitor que adentra tantas memórias será também convidado a conhecer a poesia que se personifica em história. O tecido do texto é sempre esse duplo: o discurso-tecido se tecendo à medida que o tecelão tece o texto e a si mesmo.
Como Ariadne a se guiar pelos fios no labirinto, o eu-que-escreve (ou que-narra) persegue e vai alinhavando com suas agulhas a tessitura do seu texto-vida. E é isso mesmo que se vê no novelo-livro: nos seus dedos, as palavras-fios estão entrelaçadas às memórias-linhas; na sua escrita, o alto discurso literário, acadêmico surge em consonância com a vida que se vive e as estórias rememoradas.
A narrativa tecida em sacro sertão, sinas tem, portanto, o mesmo ponto de partida do sujeito que a escreve: o sertão periférico de sua vó e o sertão tão político, histórico, social e intelectualizado pelas mãos de Guimarães Rosa. Por criar narrativas no seu interior, a tessitura de seu discurso, a trama de seu personagem e a sua procura de si tomam rumos semelhantes: no tecido do inacabado, do sempre em construção, o viver e o narrar se fundem.


A hábil e doce escrita deste livro transforma e transpõe para a palavra literária toda a magia que envolve os processos de gestação: do tecido do texto, do mundo, dos seres... E é a voz de Riobaldo que ressoa em ecos no fundo da memória que se busca preservar. Os causos sertanejos, os discursos orais, a poética-falada se entrelaçam mais uma vez em arte de escrever, e o resultado só pode ser de alta compreensão literária e de fina sensibilidade humana.
Nessa narrativa sertaneja de um ex-jagunço, de infância difícil e de muitos sacrifícios e dúvidas, o leitor se descobre no meio do sertão “onde a sina do homem está traçada antes mesmo dele parido...”, ao passo que a leitura desta obra sugere a reconstrução do Brasil, a busca da formação desse país de linguagem popular, rasteira e plena da oralidade. Assim, a escritura desta narrativa recorre à palavra anterior à própria escrita, porquanto, no fundo, o que se busca nas narrativas do sertão é o encontro com os arquétipos humanos.
E para o autor deste livro, para quem a palavra literária é maneira de gestação, a forma sincera de criar (ou recriar) a sua própria história perpassa as linhas da contação de estórias orais. História e estória se tecem dos mesmos fios e a escrita literária é ferramenta poética de busca do nonada, do anterior, da origem, das primeiras e primordiais palavras.
O que viceja no narrador Florduardo é compartilhado com leitor-escritor que se aventurou nessas paragens de literatura: uma inquietude que impõe a caminhada, um vazio, uma perda, uma falta. Se “Viver é arrocho de existência”, narrar é possibilidade de existir. Assim é para o narrador-personagem, assim é para o seu escritor.
As estórias que o leitor vai desvendar nesse labirinto são permeadas de remorso e de solidão, são falas de procura do eu-em-mim-mesmo, dos infernos humanos e da compreensão da origem da maldade. Florduardo quer conhecer e compreender o eu-por-trás-de-mim que esconde as latentes maldades humanas e, pleno de um senso de justiça, de igualdade, narra suas aventuras no sertão e o que ele aprendeu sobre as questões de poder, de hierarquia, de injustiças e desigualdades.
No seu sertão (que é o mundo!) e no seu mundo (que é o sertão!), as maldades humanas se revelam, as dúvidas existenciais afloram, as crenças e misticismos tomam conta dos homens, a razão e a desrazão se misturam, o bem e o mal pesam e causam questionamentos... E é num jogo curioso de linguagem sertaneja que se costuram crendices e estórias, violências e amores, misérias e alegrias, nessa narrativa permeada de lirismos de paisagens.
O latifúndio do amor se apodera de Florduardo e também o ensina que vau da vida é a coragem. Amor, religiosidade, alegrias, arrependimentos e promessas, a existência do Diabo, o caído-eterno, os pactos, as bem-querências: todos esses temas de filosofia sertanejo-humano aguardam o leitor, que as encontrará moldadas pelo inédito da linguagem do trivial, pelo surpreendente da linguagem do banal.
E na sintaxe da desrazão, na desrazão da linguagem desaprisionada, haverá igualmente a presença do humor que subjaz as narrativas sertanejas. O humor da vida, o humor dos jogos linguísticos: a delícia maior de se ler, deleitar!
Se Guimarães Rosa povoa este autor, em suas experiências de vida, em suas experiências literárias, há esse outro convite ao leitor para conhecer o sertão que é dentro da gente, já que o discurso literário pode conduzir tanto ao universo filosófico, político, social, quanto ao ambíguo universo dos humanos-seres.
Mas essa cantiga de se fechar os olhos é preciso ler e decifrar. O leitor é que há-de. O que se contam nessas páginas é a poética-humana-original, numa leitura de saudades-encontráveis, num tecido de se repisar o gostoso da linguagem.
Nesse livro, aliás, a linguagem é maior até mesmo que o seu enredo, a linguagem é tudo. A linguagem ampliada, deslimitada é que é gênese do mundo: do mundo do vivido, do mundo lido. E a linguagem poético-sertaneja reinaugurada invade os ouvidos do leitor, se funde ao seu-existir; e misturada ao discurso literário se traduz, sobretudo, em (re)criação do mundo em poesia-falada, o que transforma o pensamento do homem e o desorganiza.  
Assim, a linguagem poética-humana toma conta do leitor, que inebriado, embriagado, se sente impelido a conviver com essas estórias contadas (“inventadas de juízo”?). Nessa literatura que se mistura à vida, as letras lidas, os sons escutados se baralham, formando também no interior dos homens a sua própria poesia.
Viver estórias inventadas como aquelas da encantadora poética rosiana e, num exercício de escritura, em meio às rocas, aos fusos, às linhas, alinhavar os fios e atravessar o labiríntico sujeito-eu, o enovelado livro de si: esse é o convite do livro que será lido.
Viver é sempre firme aprendizagens, e o sertão, ah, esse é o rumo, a sina.

Imagem: Jucelino Sales (autor)


Sinas, veredas, travessias

De língua brincada, jogada, demudada
de fazer alegrar os olhos-ouvidos;
De literatura poético-oral-sertaneja
cujos encontráveis mistérios são decifrados cá dentro.
-          Aí, Zé, Opa:
A poesia que revive e sai em emboscada,
em romaria, em caravana, em demanda
para procuração do si-mesmo.
As prosáveis ideias humanas remexidas
no fundo da linguagem que (re)cria:
-          Aí, Zé, Opa!
Esse verso transversado para os leitores atentos
na gênese do literário-mundo-do-real.
É leitura gostosa de deliciar e fechar as janelas
da alma de adentradas naturezas reminiscentes. 


* Mestra em Literatura pela Universidade de Brasília, Aluna do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Doutorado em Literatura, da Universidade de Brasília, Professora do Instituto Federal de Brasília e membro do LitCultUnB.

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