A vida e suas dores
João Vianney
Cavalcanti Nuto
Histórias
atormentadas, de Ana Vilela, é livro de estreia, mas está longe de ser obra
de principiante. Seus contos revelam talento e maturidade artística. Talento
por conseguir criar mundos a partir da matéria vista, ouvida, vivida, sofrida.
Maturidade pelo trabalho cuidadoso com a linguagem – sem o qual uma boa
história, um enredo interessante, não resulta em uma narrativa literária –, bem
como pela segurança na utilização de técnicas narrativas adequadas ao efeito de
cada conto.
Nesses contos de
ambientação predominantemente regional – isto é, afastada dos grandes centros
urbanos – Ana Vilela não conta anedotas, não conta causos, não folcloriza, não idealiza
o campo, nem a infância. Suas narrativas baseiam-se não em enredos intricados,
nem na simples apresentação de situações, mas em vivências de aspectos
dolorosos da condição humana, em personagens marcados por certa condição de
marginalidade e fragilidade. O traço delicado com que tece essas vivências cria
atmosferas líricas, mas trágicas, baseadas não no conflito entre personagens,
mas nas relações desses personagens com a vida, o tempo, o mundo.
Um dos traços
que contribuem para a beleza dolorida desses contos é a articulação entre
personagem e ambiente, intimamente associados, como dois termos de uma
metáfora. Essa composição metafórica dá
o tom de narrativas como “Tempo”, conto que abre a coletânea: “Tinha o cheiro
doce de araticum Seu Genésio, sempre à cata de fruta em suas andanças pelo
cerrado. Muita das vezes comia por ali mesmo, no meio do pasto, embaixo de
alguma sombra de árvore retorcida, casas vincadas, folhas ásperas. Anos de vida
tinham-se ido por aqueles campos às vezes esperança, às vezes desespero. Chuva
e seca”. O mesmo acontece em “O canto da seriema”: “O velho casarão
escancara-se sempre que as pernas longas e pretas de Monique pedem passagem,
porque, se não os corações dos internos, ao menos todas as portas do antigo
asilo são destituídas de preconceito”.
O conto “A velha
casa” é um dos melhores do livro, pela maneira inteligente e sensível de compor
a ambientação, apresentando somente os detalhes que sintetizam o um lugar, uma
pequena cidade, mas sempre em relação com a vida passada, as mudanças de
condição e o momento sofrido do personagem em sua relação com o meio onde vive.
Neste conto, como em outros do livro, não há descrições supérfluas nem
caracterizações estáticas: tudo converge para criar o efeito de vivência do protagonista.
Esse rigoroso senso de síntese e de sugestão quase sempre dispensa a referência
a lugares específicos. E, quando acontece, a referência tende a ter dimensão
alegórica, como é o caso de Goiás, como nome de personagem, e outros nomes
próprios do conto: o importa não é a coincidência com nomes de lugares que
conhecemos, mas as conotações sugeridas na narrativa. Há mesmo contos que
prescindem quase totalmente de ambientação, sendo conduzidos somente por
diálogos muito bem construídos: “A primeira vez” e “O beco dos ratos”.
Imagem divulgação: Ana Vilela
Entre a
composição dramática por meio de diálogos que prescindem a exposição de um
narrador e a narrativa de primeira pessoa, Ana Vilela consegue matizar os
efeitos de cada conto, por meio de hábil utilização do foco narrativo. “O
santo”, único conto do livro narrado em primeira pessoa, é também um dos
melhores, pela maneira como apresenta os sentimentos da criança revividos pelo
narrador adulto, efeito ampliado pelo uso do tempo presente, que dramatiza os
acontecimentos recordados: “Sou vergonha. Duas vezes. De minha mãe e de ter
vergonha”. No já citado “A velha casa”, a autora alterna duas sequências de
tempo, conjugando os acontecimentos imediatos com a trajetória de vida do
personagem. Em outros contos, como “Cavalo baio” e “O grito”, o discurso
indireto livre do narrador expõe as repercussões internas, no personagem, dos
acontecimentos apresentados nos diálogos.
O último conto de Histórias atormentadas, “Todas as vidas
de um garoto sob os escombros”, é uma fábula que alegoriza todo o espírito do
livro: melancólico, mas compassivo: “Estavam tristes, mas felizes. Éolo estava
feliz, mas triste. Precisava reaprender tudo o que achava que sabia sobre os
seres humanos, todas as suas crenças e verdades”. Assim são as Histórias atormentadas: um olhar lúcido
– nem cruel, nem idealizador – sobre as dores de vidas simples; um olhar atento
aos pequenos detalhes, mas sintético – e avesso a espetacularização.
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