terça-feira, 25 de abril de 2017

A vida e suas dores

João Vianney Cavalcanti Nuto


            Histórias atormentadas, de Ana Vilela, é livro de estreia, mas está longe de ser obra de principiante. Seus contos revelam talento e maturidade artística. Talento por conseguir criar mundos a partir da matéria vista, ouvida, vivida, sofrida. Maturidade pelo trabalho cuidadoso com a linguagem – sem o qual uma boa história, um enredo interessante, não resulta em uma narrativa literária –, bem como pela segurança na utilização de técnicas narrativas adequadas ao efeito de cada conto.
Nesses contos de ambientação predominantemente regional – isto é, afastada dos grandes centros urbanos – Ana Vilela não conta anedotas, não conta causos, não folcloriza, não idealiza o campo, nem a infância. Suas narrativas baseiam-se não em enredos intricados, nem na simples apresentação de situações, mas em vivências de aspectos dolorosos da condição humana, em personagens marcados por certa condição de marginalidade e fragilidade. O traço delicado com que tece essas vivências cria atmosferas líricas, mas trágicas, baseadas não no conflito entre personagens, mas nas relações desses personagens com a vida, o tempo, o mundo.
Um dos traços que contribuem para a beleza dolorida desses contos é a articulação entre personagem e ambiente, intimamente associados, como dois termos de uma metáfora.  Essa composição metafórica dá o tom de narrativas como “Tempo”, conto que abre a coletânea: “Tinha o cheiro doce de araticum Seu Genésio, sempre à cata de fruta em suas andanças pelo cerrado. Muita das vezes comia por ali mesmo, no meio do pasto, embaixo de alguma sombra de árvore retorcida, casas vincadas, folhas ásperas. Anos de vida tinham-se ido por aqueles campos às vezes esperança, às vezes desespero. Chuva e seca”. O mesmo acontece em “O canto da seriema”: “O velho casarão escancara-se sempre que as pernas longas e pretas de Monique pedem passagem, porque, se não os corações dos internos, ao menos todas as portas do antigo asilo são destituídas de preconceito”.
O conto “A velha casa” é um dos melhores do livro, pela maneira inteligente e sensível de compor a ambientação, apresentando somente os detalhes que sintetizam o um lugar, uma pequena cidade, mas sempre em relação com a vida passada, as mudanças de condição e o momento sofrido do personagem em sua relação com o meio onde vive. Neste conto, como em outros do livro, não há descrições supérfluas nem caracterizações estáticas: tudo converge para criar o efeito de vivência do protagonista. Esse rigoroso senso de síntese e de sugestão quase sempre dispensa a referência a lugares específicos. E, quando acontece, a referência tende a ter dimensão alegórica, como é o caso de Goiás, como nome de personagem, e outros nomes próprios do conto: o importa não é a coincidência com nomes de lugares que conhecemos, mas as conotações sugeridas na narrativa. Há mesmo contos que prescindem quase totalmente de ambientação, sendo conduzidos somente por diálogos muito bem construídos: “A primeira vez” e “O beco dos ratos”.

Imagem divulgação: Ana Vilela

Entre a composição dramática por meio de diálogos que prescindem a exposição de um narrador e a narrativa de primeira pessoa, Ana Vilela consegue matizar os efeitos de cada conto, por meio de hábil utilização do foco narrativo. “O santo”, único conto do livro narrado em primeira pessoa, é também um dos melhores, pela maneira como apresenta os sentimentos da criança revividos pelo narrador adulto, efeito ampliado pelo uso do tempo presente, que dramatiza os acontecimentos recordados: “Sou vergonha. Duas vezes. De minha mãe e de ter vergonha”. No já citado “A velha casa”, a autora alterna duas sequências de tempo, conjugando os acontecimentos imediatos com a trajetória de vida do personagem. Em outros contos, como “Cavalo baio” e “O grito”, o discurso indireto livre do narrador expõe as repercussões internas, no personagem, dos acontecimentos apresentados nos diálogos.
O último conto de Histórias atormentadas, “Todas as vidas de um garoto sob os escombros”, é uma fábula que alegoriza todo o espírito do livro: melancólico, mas compassivo: “Estavam tristes, mas felizes. Éolo estava feliz, mas triste. Precisava reaprender tudo o que achava que sabia sobre os seres humanos, todas as suas crenças e verdades”. Assim são as Histórias atormentadas: um olhar lúcido – nem cruel, nem idealizador – sobre as dores de vidas simples; um olhar atento aos pequenos detalhes, mas sintético – e avesso a espetacularização.

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