Autoria e encenação da subjetividade em "Lorde"
Sylvia
Cristina Toledo Gouveia*
Imagem de Phillippe Lejeune para divulgação
Philippe
Lejeune, em "O pacto autobiográfico", sustenta que os discursos ficcionais – inclusive aqueles que implicam
uma escrita de si – não se distinguem dos discursos autobiográficos pelo grau
de sinceridade, mas sim por um pacto prévio estabelecido entre o autor e o
leitor: o pacto autobiográfico. Partindo do pressuposto de que é no nome
próprio que pessoa e discurso articulam-se, Lejeune aduz que a autobiografia
exige uma identidade entre o autor (aquele cujo nome encontra-se estampado na
capa do livro), o narrador e o personagem. Conclui-se, a partir desse preceito,
que as condições para se distinguir o pacto autobiográfico do pacto romanesco
encontram-se na coincidência onomástica, que legitima a confiança do leitor e
responsabiliza o autor por aquilo que emerge no texto. Cabe questionar,
contudo, para onde é deslocado o discurso quando esse contrato entre o autor e
o leitor tem a sua estabilidade abalada pela tensão entre a autobiografia e a
ficção, conduzindo o leitor a um terreno de constante hesitação.
O
romance Lorde, de João Gilberto Noll, situa-se, justamente, nesse espaço
fronteiriço entre o ficcional e o autobiográfico. O personagem protagonista é
um escritor de Porto Alegre que recebe uma proposta de um inglês interessado em
sua obra para passar uma temporada em Londres, como escritor residente. Essa
mesma experiência foi vivenciada por Noll durante os quatro meses em que o
romance Lorde fora concebido, quando o autor permaneceu em Londres com uma
bolsa de escrita do King’s College.
Os
indícios biográficos e a afirmação de que a obra – que não se resume a um
retrato da realidade – só existe em decorrência da experiência vivenciada pelo
autor, conforme ele mesmo observou, sugerem tratar-se não de um romance sobre o
autor, mas de um romance escrito a partir de um autor, sujeito físico, que,
embora não seja o fim último do texto, deixa marcas de sua inscrição enquanto
sujeito no decurso narrativo. No caso específico de Lorde, a inscrição do “eu”
traduz-se numa encenação ficcional que se passa em um palco aberto à constante
ressignificação, afinal o protagonista é um escritor de ficção no exercício
íntimo de seu ofício.
Este texto na íntegra foi publicado no livro "Personas Autorais" (2016),
deste grupo de pesquisa.
O
personagem de Lorde é um ser errante, que perambula pela cidade de Londres numa
atmosfera de deterioração da memória e de confusão da consciência, sugerindo
com frequência situações absurdas. O espelho é o objeto que no ambiente do
romance permanece como uma grande metáfora da consciência/inconsciência de si,
que dá início ao processo de dissolução da identidade do narrador personagem.
A
narrativa parece confirmar-se como um laboratório da identidade do autor,
sujeito físico, que encontra no espaço da ficção, por meio de um narrador
personagem que é, também, escritor, um território privilegiado para a
experimentação. O espaço de tensão entre o autobiográfico e o ficcional
instaura-se a partir do momento em que, se por um lado o leitor é colocado
diante da presença de referências à vida do autor enquanto sujeito, de modo a
sugerir uma autobiografia real, por outro a narrativa é permeada de
procedimentos retórico-discursivos que inviabilizam a correlação entre o
narrado e o supostamente vivido: o leitor é constantemente apresentado ao
insólito. Esse espaço de tensão torna
problemático o enquadramento de Lorde na instância da autobiografia e também da
ficção. A autobiografia é negada pelo próprio autor e refutada pela ausência do
pacto autobiográfico e da sua correspondente coincidência onomástica. A ficção,
por sua vez, é assombrada constantemente pelas referências biográficas,
ocasionando uma espécie de pacto fantasmagórico pela convivência conflituosa do
real (autobiográfico) com o insólito (nitidamente ficcional). Assim, a
narrativa desestabiliza os parâmetros elementares da leitura ao flexibilizar as
balizas que definem os pactos autobiográfico e romanesco. Parece-nos, pois, ser
esta uma característica das escritas de si, sobretudo nas narrativas em que um
escritor (ficcional) figura como personagem protagonista, como no caso de
Lorde.
A
subjetividade inserida no espaço narrativo não corresponde à do autor enquanto
sujeito, mas registra na escrita uma presença que advém dos indícios
biográficos por ele deixados, especialmente, no caso da literatura
contemporânea, no espaço da mídia, por meio, por exemplo, de entrevistas nas
quais o autor comenta a própria obra. Desse modo, a encenação ficcional da
subjetividade não revela um alguém que é representado no texto, mas que
permanece presente no texto e emerge de um locus não textual, oriundo do
conhecimento que o leitor possui sobre as suas referências biográficas. O texto
passa a ser, assim, o abismo sobre o qual o autor se lança, sem precisar,
todavia, assumir a responsabilidade pela realidade que emerge da voz do
narrador personagem, uma vez que se trata de uma realidade ficcional, por mais
que esteja permeada por referências que remetem à vida do autor enquanto
sujeito, previamente conhecidas pelo leitor.
O
tornar-se outro em relação a si, sintomaticamente representado em Lorde por
meio da relação do narrador-personagem com o espelho, aponta para o olhar para
si pelos olhos do outro e nos conduz ao posicionamento axiológico assumido pelo
autor-sujeito em relação à própria vida, com reflexos que se manifestam no
acabamento estético do narrador-personagem. A autocontemplação no espelho, que
adquire contornos metafóricos em Lorde, é utilizada por Bakhtin em sua reflexão
acerca do excedente de visão e de conhecimento utilizado pelo autor para a
consumação do personagem.
O
ambiente romanesco de Lorde – território privilegiado para a inscrição de um
gesto literário que é revelado no exercício autoexpositivo do escritor
personagem – emerge da apropriação da autobiografia pela ficção, aliada ao
processo de fragmentação do “eu” em sua encenação ficcional. O autor, João
Gilberto Noll, enquanto sujeito, retorna ao texto e o transforma num ângulo de
refração para a dissipação da sua subjetividade, sem assumir, por outro lado, a
responsabilidade inerente ao registro da assinatura do escritor no ambiente
autobiográfico. Observe-se, nesse sentido, que em Lorde tanto o autor quanto o
narrador-personagem abrem mão de seu comprometimento com a verdade, que se
perde nas próprias contradições e disparates da narrativa. O compromisso com a
verdade em relação ao autor é afastado pelo pacto ficcional, em que pesem as referências
biográficas. Já o compromisso do narrador personagem com a verdade é refutado
pelo próprio protagonista escritor, que se reconhece como indivíduo desprovido
de memória e de coerência em relação aos próprios pensamentos e experiências,
uma vez que o seu universo, conforme ele mesmo reconhece e constantemente
reafirma, é um universo de delírio. Um universo de delírio do personagem. Um
universo de delírio do autor.
*Doutoranda em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB)
Membro do Grupo de Estudos de Literatura e Cultura da UnB
Belíssimo texto! Dá vontade de conhecer Noll mais a fundo e devorar sua obra. Chega mesmo a ser intrigante pelo modo como decifra e revela a representação do Pacto de Lejeune. Abriu uma porta nas minhas ideias trucadas. Muito bom!
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