quinta-feira, 13 de abril de 2017

Autoria e encenação da subjetividade em "Lorde"

Sylvia Cristina Toledo Gouveia*

Imagem de Phillippe Lejeune para divulgação

Philippe Lejeune, em "O pacto autobiográfico", sustenta que os discursos ficcionais – inclusive aqueles que implicam uma escrita de si – não se distinguem dos discursos autobiográficos pelo grau de sinceridade, mas sim por um pacto prévio estabelecido entre o autor e o leitor: o pacto autobiográfico. Partindo do pressuposto de que é no nome próprio que pessoa e discurso articulam-se, Lejeune aduz que a autobiografia exige uma identidade entre o autor (aquele cujo nome encontra-se estampado na capa do livro), o narrador e o personagem. Conclui-se, a partir desse preceito, que as condições para se distinguir o pacto autobiográfico do pacto romanesco encontram-se na coincidência onomástica, que legitima a confiança do leitor e responsabiliza o autor por aquilo que emerge no texto. Cabe questionar, contudo, para onde é deslocado o discurso quando esse contrato entre o autor e o leitor tem a sua estabilidade abalada pela tensão entre a autobiografia e a ficção, conduzindo o leitor a um terreno de constante hesitação.
O romance Lorde, de João Gilberto Noll, situa-se, justamente, nesse espaço fronteiriço entre o ficcional e o autobiográfico. O personagem protagonista é um escritor de Porto Alegre que recebe uma proposta de um inglês interessado em sua obra para passar uma temporada em Londres, como escritor residente. Essa mesma experiência foi vivenciada por Noll durante os quatro meses em que o romance Lorde fora concebido, quando o autor permaneceu em Londres com uma bolsa de escrita do King’s College.
Os indícios biográficos e a afirmação de que a obra – que não se resume a um retrato da realidade – só existe em decorrência da experiência vivenciada pelo autor, conforme ele mesmo observou, sugerem tratar-se não de um romance sobre o autor, mas de um romance escrito a partir de um autor, sujeito físico, que, embora não seja o fim último do texto, deixa marcas de sua inscrição enquanto sujeito no decurso narrativo. No caso específico de Lorde, a inscrição do “eu” traduz-se numa encenação ficcional que se passa em um palco aberto à constante ressignificação, afinal o protagonista é um escritor de ficção no exercício íntimo de seu ofício.

Este texto na íntegra foi publicado no livro "Personas Autorais" (2016), 
deste grupo de pesquisa.

O personagem de Lorde é um ser errante, que perambula pela cidade de Londres numa atmosfera de deterioração da memória e de confusão da consciência, sugerindo com frequência situações absurdas. O espelho é o objeto que no ambiente do romance permanece como uma grande metáfora da consciência/inconsciência de si, que dá início ao processo de dissolução da identidade do narrador personagem.
A narrativa parece confirmar-se como um laboratório da identidade do autor, sujeito físico, que encontra no espaço da ficção, por meio de um narrador personagem que é, também, escritor, um território privilegiado para a experimentação. O espaço de tensão entre o autobiográfico e o ficcional instaura-se a partir do momento em que, se por um lado o leitor é colocado diante da presença de referências à vida do autor enquanto sujeito, de modo a sugerir uma autobiografia real, por outro a narrativa é permeada de procedimentos retórico-discursivos que inviabilizam a correlação entre o narrado e o supostamente vivido: o leitor é constantemente apresentado ao insólito. Esse espaço de tensão torna problemático o enquadramento de Lorde na instância da autobiografia e também da ficção. A autobiografia é negada pelo próprio autor e refutada pela ausência do pacto autobiográfico e da sua correspondente coincidência onomástica. A ficção, por sua vez, é assombrada constantemente pelas referências biográficas, ocasionando uma espécie de pacto fantasmagórico pela convivência conflituosa do real (autobiográfico) com o insólito (nitidamente ficcional). Assim, a narrativa desestabiliza os parâmetros elementares da leitura ao flexibilizar as balizas que definem os pactos autobiográfico e romanesco. Parece-nos, pois, ser esta uma característica das escritas de si, sobretudo nas narrativas em que um escritor (ficcional) figura como personagem protagonista, como no caso de Lorde.
A subjetividade inserida no espaço narrativo não corresponde à do autor enquanto sujeito, mas registra na escrita uma presença que advém dos indícios biográficos por ele deixados, especialmente, no caso da literatura contemporânea, no espaço da mídia, por meio, por exemplo, de entrevistas nas quais o autor comenta a própria obra. Desse modo, a encenação ficcional da subjetividade não revela um alguém que é representado no texto, mas que permanece presente no texto e emerge de um locus não textual, oriundo do conhecimento que o leitor possui sobre as suas referências biográficas. O texto passa a ser, assim, o abismo sobre o qual o autor se lança, sem precisar, todavia, assumir a responsabilidade pela realidade que emerge da voz do narrador personagem, uma vez que se trata de uma realidade ficcional, por mais que esteja permeada por referências que remetem à vida do autor enquanto sujeito, previamente conhecidas pelo leitor.

Romance "Lorde", de João Gilberto Noll.

O tornar-se outro em relação a si, sintomaticamente representado em Lorde por meio da relação do narrador-personagem com o espelho, aponta para o olhar para si pelos olhos do outro e nos conduz ao posicionamento axiológico assumido pelo autor-sujeito em relação à própria vida, com reflexos que se manifestam no acabamento estético do narrador-personagem. A autocontemplação no espelho, que adquire contornos metafóricos em Lorde, é utilizada por Bakhtin em sua reflexão acerca do excedente de visão e de conhecimento utilizado pelo autor para a consumação do personagem.
O ambiente romanesco de Lorde – território privilegiado para a inscrição de um gesto literário que é revelado no exercício autoexpositivo do escritor personagem – emerge da apropriação da autobiografia pela ficção, aliada ao processo de fragmentação do “eu” em sua encenação ficcional. O autor, João Gilberto Noll, enquanto sujeito, retorna ao texto e o transforma num ângulo de refração para a dissipação da sua subjetividade, sem assumir, por outro lado, a responsabilidade inerente ao registro da assinatura do escritor no ambiente autobiográfico. Observe-se, nesse sentido, que em Lorde tanto o autor quanto o narrador-personagem abrem mão de seu comprometimento com a verdade, que se perde nas próprias contradições e disparates da narrativa. O compromisso com a verdade em relação ao autor é afastado pelo pacto ficcional, em que pesem as referências biográficas. Já o compromisso do narrador personagem com a verdade é refutado pelo próprio protagonista escritor, que se reconhece como indivíduo desprovido de memória e de coerência em relação aos próprios pensamentos e experiências, uma vez que o seu universo, conforme ele mesmo reconhece e constantemente reafirma, é um universo de delírio. Um universo de delírio do personagem. Um universo de delírio do autor.

*Doutoranda em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB)
Membro do Grupo de Estudos de Literatura e Cultura da UnB

Um comentário:

  1. Belíssimo texto! Dá vontade de conhecer Noll mais a fundo e devorar sua obra. Chega mesmo a ser intrigante pelo modo como decifra e revela a representação do Pacto de Lejeune. Abriu uma porta nas minhas ideias trucadas. Muito bom!

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