quinta-feira, 11 de maio de 2017

O quê de Maria

Allan Michell Barbosa


Maria era capitã da avenida. Jovem e sagaz, todos os dias, menos às quintas-feiras, estava ela no ponto do trabalho com suas outras amigas, tão tenras e sorridentes quanto ela. Capitã porque aprendera o trabalho facilmente, parecia ter descoberto a profissão que lhe cabia e a ensinava com maestria às novatas. Seus conselhos eram ouvidos como dogmas incontestáveis. Dizia sempre que não havia coisa pior que “mexer com ser humano”, era preciso não ser tonta e ter malícia escondida na manga. As outras a admiravam, ou melhor, a invejavam, porque só saía com barões, com “gente da alta”, como diziam.
Maria não era como deusa grega esculpida por qualquer um daqueles artistas clássicos, contudo, era alta, branca, pernas servidas, olhos castanhos, cabelos negros e lisos, nariz pomposo e lábios cheios, cobertos de um sorriso branco abençoado pela natureza, mas seu charme... seu verdadeiro charme era a risada: ecoava como graça de moça bonita boa de cama: abriam-se dentes, gengiva nutrida, apertar de olhos, alcovas nas bochechas e uma jogada de cabelo brilhante: anjo tentador da noite urbana. Esse era o quê de Maria, mas as outras meninas nunca souberam explicá-lo.
O primeiro dia de trabalho de Maria fora justamente numa quinta-feira. As outras garotas perguntaram-na qual seria seu “nome artístico”. Ela, sempre sorridente, disse sua alcunha de nascença. As outras riram, malharam da ingenuidade. Mas nunca mudaria o nome. Prometeu para si mesma que nunca mais trabalharia às quintas-feiras.
Nunca havia imaginado que haveria tantos clientes numa segunda, era o dia que mais trabalhava no início. Questionou-se... resposta veio rasteira: na segunda, as esposas desconfiam menos se o marido chega mais tarde em casa ou, no que tange aos solteiros, é bom despejar o estresse na cama para que a semana flua melhor. Maria e as outras é que recebiam todo o despejo do estresse.
Considerava terça um dia estranho, dia vazio, monótono, pessoas mais preocupadas em se empanturrar com comida em casa depois do trabalho e pensar na vida. Conclusão: terça-feira era dia de má clientela.
Na quarta, o cinema e o teatro ficavam mais baratos, os homens, principalmente os solteiros, saíam à rua, não suportando o tédio do filme americano, iam à procura das garotas. Conclusão: quarta-feira sempre foi recompensa do não trabalho de terça-feira. Bem que sempre diziam que nada melhor que o dia de amanhã!
De sexta a sábado, Maria se produzia duplamente. Deixava o ar natural e entupia-se de maquiagem e roupas sensuais. Todos seus acessórios eram de primeira linha, para satisfazer os barões, afinal, eram eles que tudo pagavam.
Morava numa quitinete, sozinha, num prédio próximo à avenida. Nunca quisera morar com ninguém, considerava-se enjoada demais para ter uma companheira de quarto. Às vezes sentava-se à tarde na mesa de apenas duas cadeiras e fitava as fotos de quando era pequena. Lágrima nenhuma lhe caía pela face, muito pelo contrário, era a risada de sempre que se abria e retinia pelos azulejos da minúscula cozinha.
Maria tinha um segredo e não o contava a ninguém que fosse vivo: adorava ler histórias melodramáticas de amor. Sonhava com príncipes encantados, voava com pensamentos e eflúvios de romantismo, mas eram passageiros, duravam apenas o final de uma tarde, depois ia se arrumar para mais uma noite. Batia palmas, rebolava e dançava na frente do espelho grande que mandara ser feito para seu quarto e dizia a si mesma: “Acorda, Maria, que sonhar não enche barriga de ninguém, mulher!”. E da quitinete saía em busca das aventuras noturnais. Algumas vezes passava pelo corredor sob os “fiu-fius” dos vizinhos, e era nesse momento que o quê de Maria se protagonizava, a autoestima elevava-se.
Maria gostava de alguns livros, achava interessante ser uma mulher culta e isso instigava os clientes. Lera uma vez, numa coletânea de livros de um tal de Freud, que o riso era o medo. Estava na livraria no momento e começou a pensar. Concluiu: que besteira! Deixou o livro na prateleira e foi-se embora. Foi o dia que mais riu.
Maria era cuidadosa e tinha artimanhas para conseguir os homens que quisesse e afugentar os que a incomodava. Como capitã advertia sobre os sestros e manias dos clientes para as amigas, principalmente depois de passar por situações constrangedoras. Não sabia por que os homens pensavam somente em sexo, só sabia que era o que mais gostavam, mas começara a desconfiar de certas coisas quando alguns choravam depois que ela terminava o trabalho. Saía pensativa, refletindo a respeito. Perdera qualquer ingenuidade.
Certa terça-feira descera as escadas do prédio da quitinete e caminhou em direção à avenida, percebeu que alguém a perseguia. Virou numa esquina e parou para olhar. Era um dos seus clientes, um dos quais que até chorara sob os pés da cama certa noite, dizendo ser apaixonado por ela. Ela continuou o caminho, ele acelerou o passo, chegou de encontro a ela e discretamente a olhou. Maria fingiu não ver, mas parou em frente à vitrina de uma loja de joias. O homem da mesma forma parou e se aproximou. Maria, toda maquiada e bem vestida, disse ironicamente que era dia de cobrar mais caro para quem a perseguisse. Ele fitou as joias na vitrina e disse que por Maria compraria todos aqueles brilhantes e diamantes e que a faria feliz, se assim ela quisesse. Maria fingiu de imediato não ouvir. Mas sua cabeça rodopiava, estava confusa, estática, os livros rodaram como um filme na sua mente, as palavras daquele Freud faiscaram no pensamento, pela primeira vez parecia que não sabia o que fazer. De repente, ficou de frente para ele. Fitou seus olhos. A capitã tornou-se séria, num estampido seus nervos se acalmaram, mas o coração batia forte. Era terça-feira ainda, mas de repente já parecia quarta. Maria foi estreitando os olhos, abrindo lentamente um pequeno sorriso labial e, de súbito, relampejou uma risada, a mais alta e mais sensual que já fizera. Desviou do homem à sua frente e seguiu caminhando sob os olhares de quem passava. O quê de Maria ecoava pela rua iluminada, e era infinitamente Maria... apenas Maria.


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