Amor estético
João
Vianney Cavalcanti Nuto
Reprodução de "Os amantes", Magritte, 1928.
A relação
amorosa é essencialmente dialógica. Pode-se, às vezes, amar sem qualquer
diálogo verbal, mas nunca sem aquele acolhimento da alteridade que caracteriza
o dialogismo. Sem relação verdadeiramente dialógica, o que resta é um espectro
ou um simulacro de amor: isolamento a dois, projeção egocêntrica de si no
outro, introjeção sufocante do outro em si, mas nunca o verdadeiro amor. É
entre reações e respostas a amores e desamores diversos que somos feitos e nos
fazemos gente. E, entre todos os amores e desamores que nos geram, o amor
erótico é dos mais intensamente dialógicos. Depois (no sentido cronológico) do
amor maternal e familiar, é o que mais nos expõe a planos e arestas do diálogo
profundo com o outro. E, se é com o outro que aprendermos a nos tornarmos quem
somos, intensa e imensa é a aprendizagem com esse tão intimamente outro, que é
a pessoa amada. Tanto na alegria quanto nas falácias e falências, o amor ensina
a quem tiver ouvidos e coração para escutá-lo. Escutar o amor implica acolher e
responder a consonâncias e dissonâncias. Expor-se; acolher; responder;
mergulhar; nadar, surfar. Navegar no curso de um rio que sempre se transforma
sem deixar de ser o mesmo.
Considerando
sempre o papel fundamental da alteridade, Mikhail Bakhtin acrescenta, a esses
amores que todos vivenciamos, um amor talvez mais raro: o amor estético. A
relação entre estética e amor baseia-se no acolhimento da alteridade, em que o
eu e o outro, formam-se e se enriquecem mutuamente. É o amor estético que
realiza os sentidos potenciais do texto literário; assim como é o amor dos pais
que doa a linguagem; assim como o amor erótico amplia existências. O amor
estético implica também a noção de atenção e cuidado. Trata-se de uma forma de
amor equivalente ao que o Starietz Zossima, personagem de Os irmãos Karamázov, chama de amor ativo. Só o amor ativo é
duradouro e fecundo. Ou melhor: só o amor ativo é amor verdadeiro. O amor
estético implica uma atenção e um cuidado especial com a palavra, retirando-lhe
do empobrecimento puramente instrumental a que se reduz na vida social, e
restituindo-lhe o caráter humanizador, profundamente dialógico – e poético, no
sentido mais amplo. O amor estético leva o criador ao trabalho árduo de transformar
a língua quotidiana em arte, já que não existe, segundo Bakhtin, uma linguagem
poética pronta que se oponha à prosa do dia-a-dia. O que existe são linguagens
que circulam, na vida, entre a prosa quotidiana e os gêneros literários. O
material com que o prosador e o poeta trabalham não é puramente linguístico,
mas, sobretudo, discursivo.
"Paul Alexis Leitura para Zola", Paul Cezanne, 1869
O amor estético
é a motivação inicial do poeta e do prosador, em sua relação com a língua e com
os elementos que o gênero pede: narrador, personagens, eu lírico, cronotopos. É
o amor estético que faz o autor insistir no trabalho de talhar e lapidar o
material, elaborando a forma composicional de acordo com a arquitetônica
intuída e concebida. O amor estético é trabalhoso e fecundo: é por meio dele
que a relação do autor com a língua, a arquitetônica e a forma composicional
criam o objeto estético.
Para se ler
literatura, é preciso, como diz Bakhtin, “ler com arte”. Só a leitura com arte
transforma o leitor em autor-contemplador, permitindo-o recriar o objeto
estético. Ler com arte é tarefa trabalhosa – os prazeres mais finos demandam
dedicação –, pois não consiste somente em decodificar o texto, mas em perceber
suas potencialidades de sentidos. O leitor artista precisa mobilizar
intensamente sua compreensão responsiva. É o amor estético que leva o leitor a
essa relação paciente e laboriosa com o texto. Uma atenção só exercida, via de
regra, em certas relações amorosas. Na compreensão responsiva, como no amor
verdadeiro, há a relação entre alteridades que se compreendem, mas nunca se
fundem.
Se a leitura com arte é um ato de amor estético, torna-se
ato ético na medida em que gera um novo discurso, quando ler deixa de ser ato
solitário, tornando-se dizer. A leitura compartilhada dialogicamente é um ato
de amor estético, ao se voltar para o texto, e um ato de amor ético, ao se
voltar para o interlocutor-pessoa. Estimular compreensões responsivas por meio
do exercício consciente do dialogismo é uma das formas mais humanizadoras de
educar, atividade amorosa por excelência, como afirma Paulo Freire.
Belo texto!
ResponderExcluirTexto mais que necessário em tempos que se fala tanto em amor com palavras vazias. Transpirador, professor!Hehe
ResponderExcluirTexto mais que necessário em tempos que se fala tanto em amor com palavras vazias. Transpirador, professor!Hehe
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