sábado, 20 de maio de 2017

Amor estético

João Vianney Cavalcanti Nuto

Reprodução de "Os amantes", Magritte, 1928.

A relação amorosa é essencialmente dialógica. Pode-se, às vezes, amar sem qualquer diálogo verbal, mas nunca sem aquele acolhimento da alteridade que caracteriza o dialogismo. Sem relação verdadeiramente dialógica, o que resta é um espectro ou um simulacro de amor: isolamento a dois, projeção egocêntrica de si no outro, introjeção sufocante do outro em si, mas nunca o verdadeiro amor. É entre reações e respostas a amores e desamores diversos que somos feitos e nos fazemos gente. E, entre todos os amores e desamores que nos geram, o amor erótico é dos mais intensamente dialógicos. Depois (no sentido cronológico) do amor maternal e familiar, é o que mais nos expõe a planos e arestas do diálogo profundo com o outro. E, se é com o outro que aprendermos a nos tornarmos quem somos, intensa e imensa é a aprendizagem com esse tão intimamente outro, que é a pessoa amada. Tanto na alegria quanto nas falácias e falências, o amor ensina a quem tiver ouvidos e coração para escutá-lo. Escutar o amor implica acolher e responder a consonâncias e dissonâncias. Expor-se; acolher; responder; mergulhar; nadar, surfar. Navegar no curso de um rio que sempre se transforma sem deixar de ser o mesmo.
Considerando sempre o papel fundamental da alteridade, Mikhail Bakhtin acrescenta, a esses amores que todos vivenciamos, um amor talvez mais raro: o amor estético. A relação entre estética e amor baseia-se no acolhimento da alteridade, em que o eu e o outro, formam-se e se enriquecem mutuamente. É o amor estético que realiza os sentidos potenciais do texto literário; assim como é o amor dos pais que doa a linguagem; assim como o amor erótico amplia existências. O amor estético implica também a noção de atenção e cuidado. Trata-se de uma forma de amor equivalente ao que o Starietz Zossima, personagem de Os irmãos Karamázov, chama de amor ativo. Só o amor ativo é duradouro e fecundo. Ou melhor: só o amor ativo é amor verdadeiro. O amor estético implica uma atenção e um cuidado especial com a palavra, retirando-lhe do empobrecimento puramente instrumental a que se reduz na vida social, e restituindo-lhe o caráter humanizador, profundamente dialógico – e poético, no sentido mais amplo. O amor estético leva o criador ao trabalho árduo de transformar a língua quotidiana em arte, já que não existe, segundo Bakhtin, uma linguagem poética pronta que se oponha à prosa do dia-a-dia. O que existe são linguagens que circulam, na vida, entre a prosa quotidiana e os gêneros literários. O material com que o prosador e o poeta trabalham não é puramente linguístico, mas, sobretudo, discursivo.

"Paul Alexis Leitura para Zola", Paul Cezanne, 1869

O amor estético é a motivação inicial do poeta e do prosador, em sua relação com a língua e com os elementos que o gênero pede: narrador, personagens, eu lírico, cronotopos. É o amor estético que faz o autor insistir no trabalho de talhar e lapidar o material, elaborando a forma composicional de acordo com a arquitetônica intuída e concebida. O amor estético é trabalhoso e fecundo: é por meio dele que a relação do autor com a língua, a arquitetônica e a forma composicional criam o objeto estético.
Para se ler literatura, é preciso, como diz Bakhtin, “ler com arte”. Só a leitura com arte transforma o leitor em autor-contemplador, permitindo-o recriar o objeto estético. Ler com arte é tarefa trabalhosa – os prazeres mais finos demandam dedicação –, pois não consiste somente em decodificar o texto, mas em perceber suas potencialidades de sentidos. O leitor artista precisa mobilizar intensamente sua compreensão responsiva. É o amor estético que leva o leitor a essa relação paciente e laboriosa com o texto. Uma atenção só exercida, via de regra, em certas relações amorosas. Na compreensão responsiva, como no amor verdadeiro, há a relação entre alteridades que se compreendem, mas nunca se fundem.
                Se a leitura com arte é um ato de amor estético, torna-se ato ético na medida em que gera um novo discurso, quando ler deixa de ser ato solitário, tornando-se dizer. A leitura compartilhada dialogicamente é um ato de amor estético, ao se voltar para o texto, e um ato de amor ético, ao se voltar para o interlocutor-pessoa. Estimular compreensões responsivas por meio do exercício consciente do dialogismo é uma das formas mais humanizadoras de educar, atividade amorosa por excelência, como afirma Paulo Freire.

3 comentários:

  1. Texto mais que necessário em tempos que se fala tanto em amor com palavras vazias. Transpirador, professor!Hehe

    ResponderExcluir
  2. Texto mais que necessário em tempos que se fala tanto em amor com palavras vazias. Transpirador, professor!Hehe

    ResponderExcluir

Participe deste blog. Deixe aqui sua opinião, suas críticas e sugestões. Somos um espaço aberto de participação, de criação coletiva. Seremos, sempre, um blog "inacabado", em evolução, em transformação, dialogando com novas ideias e conceitos.