quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Anatomia de um pensamento inclassificável

João Vianney Cavalcanti Nuto

            “Cabe denominar filosófica a nossa análise antes de tudo por considerações de índole negativa: não é uma análise lingüística, nem filológica, nem crítico-literária ou qualquer outra análise (investigação) especial. As considerações positivas são estas: nossa pesquisa transcorre em campos limítrofes, isto é, nas fronteiras de todas as referidas disciplinas, em seus cruzamentos e junção.” Assim Mikhail Bakhtin qualifica seu próprio pensamento, cuja abrangência transdisciplinar tem sido cada vez mais confirmada.
            É com ênfase nesse aspecto do pensamento de Mikhail Bakhtin que se apresenta o livro Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável, organizado por Luciane de Paula e Grenissa Stafuzza, primeiro da série Bakhtin – inclassificável. Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável reúne trabalhos de eminentes estudiosos da obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, na Bélgica e na Itália, que analisam aspectos teóricos intrínsecos do pensamento de Bakhtin e também a pertinência de suas reflexões para o estudo de objetos hoje estudados pela análise do discurso, da qual Bakhtin pode ser considerado precursor.
            Em “Uma leitura incassificável de uma escritura inclassificável: a abordagem bakhtiniana da literatura”, Susan Petrilli destaca a relação entre a concepção dialógica de sujeito em Bakhtin e a intricada questão da autoria dos seus trabalhos, observando a presença de uma espécie de autor-criador comum disseminado nas obras assinadas por Bakhtin e outros membros do seu círculo, independentemente do grau de participação de cada um na elaboração de cada obra e analisa a continuidade entre sua filosofia da linguagem e seus trabalhos de análise literárias.
            Adail Sobral, em “A estética de Bakhtin (literatura, poética e estética) (in)classifica o pensamento de Bakhtin como uma semiótica da cultura e aponta as relações entre o ato ético e a estética em sua obra. Bénédicte Vauthier discute a questão da autoria na obra do Círculo de Bakhtin não no sentido de desvendar o verdadeiro autor dos textos assinados por Medvedvev e Bakhtin, mas a própria concepção de autoria do Círculo, o processo de tornar-se autor, entendendo-se não no sentido do autor-pessoa, mas de autor-criador. Norma Discini, em “Bakhtin: contribuições para uma estilística discursiva, explora o caráter dialógico do conceito de estilo presente no Círculo de Bakhtin, em que o estlilo não é “o próprio homem”, como queria Buffon, mas o autor em sua relação como o enunciatário. João Wanderley Geraldi, em “Sobre a questão do sujeito”, analisa as diversas dimensões da concepção de sujeito em Bakhtin: a respondibilidade,  a singularidade e o inacabamento (inconconclusibilidade).
            Dois dos trabalhos de Círculo de Bakhtin – teoria inclassificável valem-se das reflexões de Mikhail Bakhtin para a abordagem de objetos relacionados com o que hoje se denomina análise do discurso, mas em uma perspectiva verdadeiramente dialógica, sem o viés mecanicista de simplesmente “aplicar Bakhtin”. “O discurso como reflexo e refração e suas forças centrífugas e centrípetas” parte de reflexões de Bakhtin/Voloshinov, para, com o auxílio das observações de Dino Pretti sobre o discurso oral, contrastar estilística e ideologicamente o depoimento oral com os gêneros “boletim de ocorrência” e “termo circunstanciado”. “Gêneros do discurso: o caso dos artigos de opinião”, de Rena Marchezan baseia-se em Bakhtin para analisar aspectos estilísticos e ideológicos de artigos de opinião sobre a política brasileira.
            Merecem especial atenção os textos de Edward Lopes e Helenice B. T. Borges e de Augusto Ponzio. O primeiro, intitulado “O nascimento do Formalismo”, faz uma apresentação detalhada do movimento que hoje se denomina Formalismo Russo, contribuição inovadora, tendo em vista as poucas traduções de trabalhos de e sobre os formalistas publicadas no Brasil. Os autores mostram como a contribuição mais aprofundada do Formalismo Russo – e de resto, do contexto soviético – ajuda a compreender melhor o pensamento de Mikhail Bakhtin e sua polêmica esses interlocutores. Já o artigo “O pensamento dialógico de Bakhtin e do seu círculo como inclassificável”, de Augusto Ponzio, não foge à polêmica, apontando alguns equívocos nas interpretações do pensamento de Bakhtin por parte de estudiosos renomados como Michael Holquist, Katerina Clark, René Wellek e Wladimir Krysinski. Considerando o fato de que Bakhtin costuma ser mal ou parcialmente interpretado por meio da leitura de fontes secundárias e terciárias – efeito colateral de todo pensamento que se torna “clássico’, ainda mais se for inclassificável – o texto de Augusto Ponzio traz grande contribuição, pois, ao realizar sua polêmica com a devida exposição do pensamento dos autores discutidos, estimula uma leitura mais atenta, sem deixar de ser dialógica, do pensamento de Mikhail Bakhtin.
            Além da inegável contribuição para uma discussão esclarecedora do pensamento de Bakhtin, o livro Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável apresenta uma característia rara nas coletâneas brasileiras do gênero: a inclusão dos textos estrangeiros traduzidos nas respectivas língua originais, no caso, italiano e francês. Considerando o grau de elaboração textual do ensaio, um dos traços que distingue esse gênero do puro artigo científico, essa forma de apresentação é muito bem vinda.

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