O desenvolvimento da
linguagem da criança numa perspectiva bakhtiniana
Amanda Lucy dos
Santos costa
Email: Amanda_lucy@hotmail.com
“Esse diálogo entre
pais e crianças acontece muito antes de elas pronunciarem suas primeiras
palavras”
(Apresentação de Del
Ré, De Paula e Mendonça)
Diante do prazeroso
dever de observar o crescimento de uma criança, pensar a construção da
identidade tem sido um exercício diário. Não por acaso, o reencontro com a “A
linguagem da criança: um olhar bakhtiniano”, um compêndio de ensaios
enriquecedores organizado pelas escritoras Alessandra Del Ré, Luciane de Paula
e Marina Célia Mendonça (publicado pela editora Contexto em 2014), tem sido um
feliz momento de (re)aprendizagem, (re)construção e reflexão. Este texto é uma
breve releitura apreciativa dos dois primeiros ensaios dessa obra.
O ensaio intitulado
“Aquisição da linguagem e estudos bakhtinianos do discurso”, escrito pelas
supracitadas organizadoras do livro, baseia-se nos estudos de desenvolvimento
da linguagem de Frédéric François, e compartilha da ideia de que “pensar sobre
a linguagem da criança contribui para entender o funcionamento da linguagem
humana”.
Com base nas teorias
do Círculo de Bakhtin, as autoras afirmam que o fato de sermos constituídos
pela linguagem e constantemente modificados por ela, ao mesmo tempo em que a
constituímos e a modificamos também (cada indivíduo de modo singular), torna
impossível a concepção da relação linguagem-cultura por meios meramente
léxico-gramaticais. Antes, é preciso verificar a forma como o indivíduo
interage com a linguagem e seus variados usos para entender a forma como ela
nos modifica.
Esse modo de pensar
leva François, em “A linguagem da Criança” (2006) a afirmar a necessidade do
desenvolvimento de uma teoria de “funcionamento da linguagem”, na qual seria
levada em consideração a translinguística. Esse conceito de translinguística
desenvolvido por Bakhtin sugere que a linguagem está além do signo linguístico,
dela participando fatores socioculturais extralinguísticos, como contexto de
fala, por exemplo.
No caso da linguagem
da criança, em especial, não se pode compreendê-la com base na retomada da sua
voz pelo adulto. É preciso que a própria criança tenha voz. Segundo as autoras,
a criança deve agir e ser encarada como sujeito agente na linguagem, pois a sua
linguagem é sua forma única de ver e habitar o mundo. E o enunciado não deve
ser desvinculado desse sujeito, seja ele criança ou adulto, pois essa é uma
relação dialógica.
Seguindo a proposta
de olhar a aquisição da linguagem com os “óculos bakhtininanos”, as autoras
definem “língua” como uma capacidade intersubjetiva, sempre vinculada a
sujeitos integrantes e por ela integrados. A “fala”, por sua vez, é um ato
responsivo quando, concreta e viva, está tomada de ideologia, sendo necessário,
para a efetiva comunicação, que se leve em conta sua essência histórica e
social.
Também destaca-se a
importância do conceito do “excedente de visão” quando se tem a criança como
sujeito da enunciação, pois a fala em função do outro é a tomada de consciência
não só de si, mas do outro enquanto fator necessário para a sua fala. Ao citar
Bakhtin, reafirmam a importância do outro e da sua relação com o outro também na
formação das crianças:
É
nos lábios e no tom amoroso deles [da mãe e de seus próximos] que a criança
ouve e começa a reconhecer seu nome, ouve denominar seu corpo, suas emoções e
seus estados internos: as primeiras palavras, as mais autorizadas, que falam
dela, as primeiras a determinarem sua pessoa, e que vão ao encontro de sua
própria consciência interna, ainda confusa, dando-lhe forma e nome, aquelas que
lhe servem para tomar consciência de si pela primeira vez e para sentir-se
enquanto coisa-aqui, são as palavras de um ser que a ama. (BAKHTIN, 1997,
67-68)
Também aí está a
importância de se observar o funcionamento da linguagem considerando a
translinguística, pois esse cruzamento de vozes participa de maneira
fundamental para a construção de uma subjetividade/alteridade. (Sobre
alteridade e a importância do outro no desenvolvimento da linguagem, há também
nesse livro o texto “A retomada da palavra da criança pelos pais”).
A aquisição da língua
materna com base na comunicação mãe/bebê, adulto/criança no estágio
pré-linguístico é abordada no ensaio seguinte pelas autoras Rosângela Hilário,
Luciane de Paula e Rafaela Bueno: “Relações entre Bakhtin e Bruner nos estudos
em aquisição”. Ao relacionarem o conceito de gêneros do discurso, de
Bakhtin, ao conceito de formato de Bruner, as autoras explicam o como a
criança se inicia na linguagem a partir das situações sociais de comunicação.
Fato é que, antes
mesmo de entender as palavras, a criança já entende alguns formatos de
comunicação com base nas suas relações mais próximas. “A linguagem surge como
adicional ao meios não verbais” (BRUNER, 1984, p.76). Dessa forma, a criança
vai adaptando, de acordo com sua experiência, os formatos de ação aos atos de
fala que os acompanham.
Essa concepção também
se aproxima do conceito de enunciado
desenvolvido por Bakhtin, pois, como explicam as autoras, o enunciado é
composto tanto pela parte verbal “realizada em palavras” quanto pela parte
extra-verbal “presumida”. E isso tudo é muito claro na fase inicial da
aquisição da linguagem, principalmente na relação mãe/bebê.
Além das conversas
casuais, nessa fase, diversos gêneros estão presentes na comunicação
adulto/criança: narrativas, cantigas de ninar, contos, jogos lúdicos, parlendas
etc... e todo contexto social que os acompanham. De modo que se, ao deitar a
criança no berço, por exemplo, a mãe costuma iniciar uma cantiga de ninar,
independente da compreensão verbal, presume-se a intenção da fala pelo formato
da situação.
As autoras finalizam
ratificando que “a inserção da criança no universo de sentido se dá, nessa
perspectiva, pelos gêneros, que se integram a formatos rotinizados [...]
possibilitando os primeiros usos da linguagem.”
A verdade é que o
desenvolvimento da linguagem de uma criança está inteiramente relacionado com a
construção de uma identidade. Isso ocorre não apenas na infância, mas o próprio
ser humano, em constante processo de (trans)formação, nunca deixa de
desenvolver sua linguagem e sua capacidade de se comunicar. A linguagem o
constitui e ele constitui a linguagem, fruto de sua essência social/sociável.
Por esse motivo, é de suma importância não só promover situações de fala com a
criança, ainda que esta esteja em estágio pré-linguístico, mas permitir e
estimular a sua expressão espontânea assim como o contato com o outro. À medida
que a criança aprende a se comunicar com o outro, seja verbal ou não
verbalmente, ela se insere no mundo social e desenvolve sua identidade com base
nas relações sociais que estabelece. Então, naturalmente, seu crescimento se dá
de modo dialógico e sua fala torna-se um ato responsivo.